Depois de não ter conseguido completar o primeiro treino no percurso do Bikingman Brasil, a vontade de fazer o reconhecimento completo só aumentou. Planejei uma nova tentativa para a primeira semana de abril, deixando pouco mais de um mês de recuperação até a prova, que estava marcada para maio.
A primeira providência foi comprar não uma, mas duas gancheiras reservas, já que a falta dessa peça diminuta e tão simples de instalar tinha acabado com a minha tentativa anterior. Troquei a bolsa de selim da Draisiana por uma Ortlieb e reinstalei o pneu WTB Riddler na roda traseira. Este pneu veio com a bicicleta de fábrica, e o Vittoria Terreno Dry do primeiro treino estava gasto.
Havia outra pessoa planejando pedalar no percurso naquele mesmo fim-de-semana: o Vini, Vinicius Martins, diretor do Bikingman Brasil. Ele havia me ajudado muito no primeiro treino e eu tinha gostado muito dele quando o conheci em um brevet que ele organizou em Mogi das Cruzes. O Vini pretendia fazer os dois primeiros dias do trajeto e sugeriu irmos juntos. Depois de um pouco de hesitação minha, sabendo que o Vini é bastante superior a mim no pedal, entendi que ele estava aberto a ir comigo e combinamos de ir juntos. Logo o Fred Kastrup, que também tinha sido muito bacana e atencioso comigo no primeiro treino, confirmou que iria também. A festa estava marcada.
Pré-largada
A ida a Taubaté foi bem parecida com a do primeiro treino: bike até a rodoviária do Rio, ônibus até Taubaté, e bike até o hotel. Desta vez ficamos no Gran Continental, o hotel oficial da prova. O hotel é ótimo, melhor ainda do que o Íbis do primeiro treino, e o café da manhã foi sensacional.
O Treino
Dia 1
https://www.strava.com/activities/5105245519
Taubaté — Piracaia
221km
4367m de altimetria
16:24h tempo total
Largamos às 5:40h. O tempo e o astral estavam ótimos. Antes mesmo de passarmos por Tremembé o Luiz Pires, que também vai participar da prova, se juntou a nós. Fomos em ritmo de treino, não era devagar mas dava para bater papo e brincar.
Paramos sem pressa em Santo Antônio do Pinhal e São Bento do Sapucaí.
Antes de entrar na terra eu baixei a pressão dos pneus “no dedo”. Senti que tinha exagerado um pouco, mas fui em frente.
A prova começa com 3 subidas longas. A primeira é de asfalto e as duas seguintes são de terra. As duas descidas na terra permitem andar muito rápido, mas podem ser traiçoeiras em algumas curvas, ou caso algum carro venha no sentido contrário, ou finalmente por ter pedras pontiagudas.
Na terceira descida meu pneu WTB rasgou por dentro de um cravo grande, o primeiro do sidewall. Esse pneu que veio com as Topstone é notoriamente ruim. O rasgo foi de um tamanho tal que não deu para vedar totalmente com o “macarrão” de tubeless. Após mais de uma hora tentando rodar com a vedação e ainda sem câmara, o ar não parava de vazar. Maestro Fred Kastrup aplicou toda sua engenhosidade e experiência, colocamos câmara no pneu e seguimos. O Vini, que já estava à nossa frente e não viu nada disso, seguiu para Joanópolis e cansou de dormir na calçada de uma padaria nos esperando.
Nos encontramos quase no final da tarde. Seguimos juntos e chegamos na “Grande Pirâmide de Bragança Paulista” (uma subida e descida não tão longas mas duríssimas) já à noite. Desta vez consegui fazer essa subida sem empurrar, mesmo com o cassete 11-34 que depois desse treino eu viria a trocar por um 11-42.
Andar com o Vini e o Fred foi uma aula constante: descer atrás deles me fez soltar muito mais o freio, mas nunca tanto quanto o Fred que é um downhilleiro muito craque. A tocada deles à noite é tão forte quanto de dia, ajudada por faróis de mais de 1000 lúmens que depois também adquiri. Toda a atitude deles é um ensinamento: eles têm automatizado até como subir na bike depois de uma parada, já tendo deixado a bike com marcha e pedivela do jeito ideal para recomeçar. Equipamentos, regulagens, psicologia…acho que absorvi uns 5% do que foi mostrado e dito por eles, mas melhorei uns 500% como ciclista de longa distância.
Quando chegamos perto de Bragança, o Vini recebeu mensagem do Fred dizendo que a braçadeira de canote dele tinha cedido, e ele teria que ficar por ali. Uma pena, e demonstração de que o percurso é tão duro para as bicicletas quanto é para os ciclistas.
Seguimos, Vini e eu, até Piracaia. Mais uma vez eu dormiria ali depois do primeiro dia do percurso.
Dia 2
https://www.strava.com/activities/5111818733
Piracaia — Salesópolis
190km
3.115m de altimetria
15h30 tempo total
Saímos de Piracaia às 6:30h da manhã. Não sacrificamos muito o sono – o Vini normalmente pedala mais acelerado em provas longas, e se permite dormir um pouco mais.
Em Igaratá tomamos um belíssimo café da manhã sentados na calçada. Era aniversário de 30 anos do Léo PedalandoPeloMundo, e mandamos um video de aniversário para ele daquela calçada mesmo.
O dia estava novamente muito bonito, e fomos curtindo em um ritmo um pouco mais acelerado do que no dia anterior. Paramos mais do que eu havia parado no primeiro treino, mas pedalamos mais rápido. Sabe Deus quão mais rápido o Vini teria ido se fosse no verdadeiro ritmo dele.
Chegamos no PC1 da prova, o Hotel Íbis de Mogi das Cruzes, no meio da tarde. O Vini ficaria por ali. Por precaução peguei mais 2 câmaras emprestadas com ele. Na regra da prova eu já teria sido desclassificado ao receber ajuda do Fred no primeiro dia, mas treino é treino.
Nos despedimos e segui para a nascente do rio Tietê. Mais uma vez emocionante o visual do km 355 da prova, especialmente com o sol começando a se pôr.
Tendo largado tarde e parado bastante, cheguei na estrada de terra que leva a Salesópolis praticamente à noite. Estava inseguro com aquele pneu WTB e fui “na manha”. Mesmo assim, logo notei que o pneu estava ficando baixo. Era sutil, então enchi um pouco e segui sem trocar câmara para sentir o que aconteceria. De fato foi um microfuro. Acabei seguindo assim: parando algumas vezes apenas para recalibrar.
Esse trecho de terra, beirando a represa, é muito bonito, um entre tantos trechos lindos da prova.
Cheguei em Salesópolis depois das 9 da noite. Todos os hotéis fechados por conta da Covid. Uma das poucas pessoas na rua era um vendedor de churros. Ele me deu um churros de presente. Apenas uma pousada me salvou: a São José. Fiquei sozinho na casa, troquei a câmara, derrubei o disjuntor num banho de chuveiro elétrico e dormi.
Dia 3
Salesópolis — Paraty
https://www.strava.com/activities/5117080048
213km
3.216m de altimetria
16:50h tempo total
Saí de Salesópolis às 6 da manhã. Bastante frio mais uma vez, mas céu claro. Este dia me deixava um pouco apreensivo, porque eu pegaria o trecho que encerrou meu treino anterior.
Entre Salesópolis e a saída da Tamoios para a estrada de terra, estamos no primeiro trecho longo de relativo descanso de toda a prova. São 60km em bom asfalto, sem nenhuma subida agressiva, e com uma ótima descida de 4km.
A estrada de terra que sai da Tamoios faz um paralelo entre Caraguatatuba e Ubatuba, por cima da Serra do Mar. Ela começa bem tranquila, plana, sombreada e relativamente lisa. Segue assim por uns 20km, passando por uma ou duas vilas com padaria e lanchonete. Depois vai ficando mais acidentada, com subidas curtas e bem duras, muito menos carros e motos. Talvez seja a parte mais “erma” de toda a prova. Nada demais: não tem mais de 15km sem ao menos uma vila, e durante o dia você vai encontrar pessoas ocasionalmente. Vale a pena ir com bastante água e comida caso queira atravessar direto este trecho, em especial à noite.
Desta vez a estrada estava seca. Zero lama, zero queda. Passei preocupado mas ileso pelos trechos mais difíceis. Uma vez no asfalto, mais subidas até chegar na descida da serra de Ubatuba. Desta vez com bom tempo e asfalto seco, desci muito tranquilo a serra de 8km.
Cheguei em Ubatuba a tempo de pegar a Trilha Norte, ótima loja de bike, aberta. Fui muito bem atendido lá. Deram uma geral na bike: uma olhada no pneu (que furou de novo ao abrir), uma fita anti-furo, uma regulada nas marchas. Dormi profundamente na oficina enquanto isso.
Já à noite, toquei rumo a Paraty. O pessoal tinha falado de uma grande tempestade que viria, mas sabendo que existem várias praias com pousadas ao longo de Ubatuba, segui assim mesmo. Peguei apenas uma chuva bem leve. A estrada estava muito calma, como aliás esteve durante todo esse treino no auge da pandemia.
Em Paraty comi um pastel gigantesco, dormi em uma pousada belíssima, numa cama gloriosa.
Dia 4
Paraty — Queluz
https://www.strava.com/activities/5122888173
155km
4.119m de altimetria
14:21h tempo total
Hoje seria dia de Serra de Cunha, 1500m de ganho de altitude em 15km. É a etapa rainha do Bikingman Brasil 2021, e nem tanto por essa primeira subida quanto pelo que vem depois: a travessia da Serra da Bocaina.
Parti às 6:55h e, antes de sair de Paraty, tomei um café caprichado para ter energia para chegar a Cunha. Em poucos quilômetros atravessamos a Rio–Santos e começa uma estrada muito linda e cercada de verde.
O que falar desta subida para Cunha? E mais ainda depois de 600 e poucos quilômetros pedalando? É dureza. Fui como pude: empurrando às vezes, descansando quando precisava. Para essa prova, uma relação muito leve sem dúvida faz diferença. Fui administrando com meu 30-34, já convencido havia uns 400km de trocar de cassete assim que pudesse.
Transposta a muralha, uma (no mais das vezes) descida muito linda e rural até Cunha. Bom asfalto e bom rendimento. Duas paradas para café e lanche, uma antes e outra dentro de Cunha, e vamos que vamos.
O Vini já tinha comentado sucintamente que o trecho depois de Cunha “é duro”. Era verdade. Estamos atravessando a Bocaina, afinal. A saída de Campos de Cunha foi onde, pela primeira vez na vida, empurrei a bike em zig-zag. A região transmite muita calma e paz, foi um prazer ter sofrido tanto por ali.
Sabendo que vamos terminar na mesma altitude que largamos, resta sempre o consolo de que uma hora vamos descer. E tendo subido tanto, cheguei à descida que lembro hoje como a mais bacana que já fiz: a descida que leva ao bairro dos Macacos, antes de Silveiras. É uma longa descida, não muito íngreme, de onde se vê toda a serra até onde a vista alcança. É possível ver também a estrada por alguns quilômetros, e como não havia carro nenhum, pude aproveitar as duas faixas de bom asfalto nas tomadas de curva. Delícia total.
Silveiras é uma cidade bem simpática onde parei já ao anoitecer. Um lanche caprichado e mais uns 40 ou 50km até Queluz. Esse trecho é mais plano, com asfalto perfeito e ótimo acostamento. Uma regeneração, se é que é possível, antes do último dia.
O Fred havia me dado uma dica que se mostrou excelente: dormir no Hotel Graal, do lado do posto Graal de Queluz. Fica bem no caminho, preço bom, quarto limpo e serviço ágil. Foi ali que dormi antes do último dia de treino.
Dia 5
Queluz — Taubaté
https://www.strava.com/activities/5129048344
228km
3.241m de altimetria
17:30h tempo total
Acordei ainda de noite desta vez, mas não saí direto para pedalar. Estava em um Graal, onde gastei uma fortuna comendo frutas, bolos e estocando energia para subir até o Parque de Itatiaia. Seria um ganho de 2000 metros de altitude em 40km, 13 deles na terra.
Um rápido trecho na Dutra, saída em Engenheiro Passos, e a subida começa timidamente. Não dura muito essa timidez. Logo estamos em uma subida de verdade, nunca tão agressiva quanto Cunha, mas muito, muito mais longa. A mais longa da minha vida até hoje. Ali liguei uma música pela primeira vez no percurso. Ali chorei pela primeira vez também. Aquele choro tão conhecido da longa distância, uma purificação e uma catarse silenciosa. Pessoal diz que faz bem.
Ao fim de 26km estamos na Garganta do Registro, a passagem para Minas Gerais e também o início do trecho de terra para o Parque. Ali tem algumas lanchonetes e lojas de roupas de frio, ótimo momento para uma parada.
A subida na terra é desafiadora. Asfalto antigo intercalado com terra requerem atenção e cuidado mesmo na subida. A temperatura cai muito também. Inúmeros gaviões são os donos do pedaço. Não vi água potável de fácil acesso. A chegada ao parque é muito bonita e ali sim há uma bica de água cristalina.
Após apreciar um pouco o lugar, meia-volta e descida. Com aquele pneu, fui de modo extremamente cauteloso. É uma descida de certo modo técnica, com muitos bicos de asfalto e pedras matreiras.
Felizmente, cheguei de volta à Garganta do Registro sem problemas. Almoço com o único doping permitido na prova: o guaraná caçula Mantiqueira. E então descer quase todos aqueles 26km que no sentido contrário tinham extraído lágrimas de meus olhos. Segunda pele, corta-vento e delírio na descida.
Alguns quilômetros antes de chegar novamente em Engenheiro Passos, a prova pega uma direita que vai até a Dutra por uma longa descida, quase plana, de cascalho. É o gravel. Rende muito e faz fluir todas as dopaminas e serotoninas da alegria.
A verdade é que, ao chegar no parque de Itatiaia, o resto da prova é um sprint de 150km. Cuidado nas descidas e sebo nas canelas porque o desenho da prova é feito para você terminar muito feliz.
Chegamos mais uma vez na Dutra porém mal a vemos desta vez: logo pegamos uma estrada antiga à direita, puro cascalho e plana. É o sprint já acontecendo. Nessa altura já era final da tarde, bastante sol e calor, e começando a vontade de chegar.
O longo trecho final é essencialmente asfalto, bem rolado, em boa parte iluminado mesmo à noite, e passando por várias cidades de médio porte do vale do Paraíba, de Cruzeiro até Taubaté. Para quem ainda tem perna é hora de pedalar a 30, 35km/h de média sem grandes problemas. Em outras palavras: se estiver acima do tempo com 850km de prova, tem jeito de se salvar.
Chegando na cidade de Taubaté, um tour da vitória pela cidade, uma última ponte-pirambeira, e finalmente a chegada da prova.
Conclusão
Achei o percurso do Bikingman Brasil 2021 muito bonito, desafiador e divertido. A pessoa precisa estar treinando, ou ter muita quilometragem nas pernas, para concluir bem. Ao mesmo tempo, mesmo os 100 primeiros quilômetros da prova já fazem tudo valer a pena.
Concluí em 114 horas. O tempo máximo previsto é 120 horas. Se tudo der certo, posso ser “finisher” da prova este ano.
Desde esse treino de abril, tenho certeza que evoluí: estou mais forte senão mais magro, fiz brevets em que virei a madrugada pedalando, melhorei minha bike e vou com menos peso na bagagem. Sorte é sempre necessária: não passar por aquela pedra, não entrar aquele galho nos seus raios. Estou muito curioso também de ver o que os atletas verdadeiramente bons vão fazer dessa prova.
Na preparação, fiz vários amigos. Passei a fazer parte do Cascalho Carioca, grupo de ciclistas de gravel aqui do Rio. Fizemos uma viagem juntos, no trajeto que vai ser o Rio Divide. Fizemos diversos pedais juntos. Conheci e entrei em contato com ciclistas de vários estados do Brasil e outros países. Li relatos de outras pessoas com quem ainda não conversei porém aprendi muito. Mais que tudo, me diverti.
Esse evento tem muito valor. Que venha esta edição e muitas outras. Obrigado ao Vini, Fred, Luiz, Axel, a todos os amigos da Cascalho Carioca — CXC e a todos os ciclistas que vão fazer parte dessa aventura.
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