Italy Divide 2022 — Terra Santa

O Italy Divide é um evento ciclístico com largada em Pompeia, Napoli, e chegada em Torbole, no Lago de Garda. São mais de 1300 quilômetros de extensão e 22500 metros de altimetria acumulada. Os terrenos são muito variados, do asfalto mais perfeito a trilhas fechadas, com direito a lama, cascalho e possibilidade de neve. Os ciclistas não recebem suporte externo. O relógio não para e cada participante é livre para se alimentar e dormir como quiser.

A prova é uma não-corrida: a primeira pessoa a chegar não ganha prêmio nem título, mas é celebrada em postagens nas redes sociais. O espírito incentivado pelo organizador Giacomo Bianchi é de aproveitar ao máximo o percurso que, todos os inscritos sabem, é muito belo e desafiador.

Minha história com o Italy Divide começa logo depois do Bikingman Brasil 2021, ou provavelmente antes. Em 2017 morei com minha família em Roma e em Lucca por um total de 5 meses. No ano seguinte moramos em Lucca mais uns 3 meses. Já na nossa primeira temporada italiana, eu e minha esposa Stefania compramos duas bicicletas simples, uma cadeirinha de criança e levamos nossa filha Olivia, então com 2 anos e meio de idade, por giros na Toscana.

Recém chegado em casa do Bikingman 2021, e muito frustrado por não ter conseguido completar aquela prova, abri o site do Italy Divide. Eu já vinha namorando o evento, e os detalhes da prova tinham acabado de sair. A combinação de local e data da largada atingiram minha alma em cheio: Pompeia, 23 de abril.

Pompeia é um dos lugares que mais me impactou em toda a vida. A beleza e preservação do passado, a sofisticação com que os habitantes viviam na cidade há mais de 2 mil anos, a arte, misturadas à tragédia expressa nas construções e principalmente nos famosos corpos mumificados vivos e transformados em esculturas assustadoras — eu não estava preparado para a magnitude daquilo e fiquei semanas bastante comovido. Eu vivia em Nova York durante a grande catástrofe ocidental deste século, o 11 de Setembro, algo que me deixou memórias muito intensas, e penso que associei mentalmente os dois eventos.

A data de 23 de abril é especial para mim porque é o aniversário do meu pai. Foi ele que, certamente sem querer, me introduziu ao ciclismo de longa distância. Eu tinha uns 11 ou 12 anos quando ele começou a me levar para pedaladas em dupla pelo bairro onde morávamos, a Barra da Tijuca. O trajeto de uns 14 quilômetros era imenso para mim, as aventuras marcantes e os momentos de parceria filho-e-pai, um presente. Muitos anos depois, quando comecei a viajar de bicicleta, meu pai ficou apavorado, mas aí já era tarde demais. Outros tantos anos depois, meu pai que havia me inspirado a gostar de bicicleta perdeu parte da visão. Lembro de um pedaço de conversa que tivemos depois, em que eu resmunguei sobre alguma falta trivial da vida, não poder comprar alguma coisa ou alguma bobagem semelhante, e ele comentou mais consigo mesmo do que para mim: “eu queria poder dar uma volta de bicicleta”.

Levei a preparação bastante a sério: passei a ser treinado pelo Nuno Lopes, técnico e ciclista com experiência de ultra distância em provas como a Trans Am Bike Race. Fiz consultas e um programa nutricional com o Rafael Brasilia, que acompanha atletas brasileiros de nível mundial. Troquei minha Cannondale Topstone por uma Specialized Diverge 2021, que comporta pneus mais largos, muito úteis para provas de bikepacking. Estudei e pratiquei manutenção na bicicleta, aumentando muito o meu repertório de reparos e ajustes. Fiz também algumas viagens usando o bivaque, uma espécie de mini-tenda do tamanho de uma pessoa, para me habituar a acampar com o equipamento adequado.

Despedida.

Roma

Embarquei no Rio de Janeiro em 15 de abril, voando para Roma com escala em Paris. A mudança de avião seria rápida, eu tinha pouco mais de uma hora. Da minha parte deu tudo certo, e eu ainda consegui curtir a paisagem no vôo entre a França e a Itália. Ao desembarcar, não demorou muito para ficar claro que a minha bicicleta não tinha chegado ao destino. A empresa não conseguiu fazer a transferência da minha única peça de bagagem, com todo o meu equipamento, em tempo hábil.

Por sorte, e também graças ao aviso prévio do amigo Vinicius Martins de que um atraso de bagagem poderia acontecer, eu havia feito uma reserva para a primeira noite em um hotel próximo do aeroporto, na cidade de Fiumicino.

Apesar da frustração de não encontrar logo as minhas coisas, a comunicação com a companhia aérea foi eficiente e logo ficou confirmado que assim que o dia raiasse a bicicleta estaria no aeroporto. Sendo assim, decidi percorrer a pé os 3 quilômetros até o hotel, aproveitando um belo pôr-do-sol. Mesmo em um trajeto que não se pretende turístico, passei por algumas ruínas milenares e já comecei a sentir a alegria e a vibração de estar em um lugar tão especial.

Tomei banho e fui caminhar rumo ao centro de Fiumicino em busca de algo para comer. Encontrei um lugar agradável com muitas famílias locais, e ali comi uma Pinsa de pistache. Dizem que a Pinsa é uma espécie de precursora da pizza que conhecemos hoje, muito leve e com a massa um pouco inflada e macia por dentro. Ela, e mais uma garrafa de cerveja Ichnusa, tranquilizaram todas as minhas preocupações e me encaminharam para uma boa noite de sono.

Pinsa.

Acordei com calma, tomei o ótimo café da manhã do hotel (já adianto que ao longo deste relato eu não vou comer mal em momento algum, isso é uma tarefa muito difícil na Itália) e, novamente a pé, voltei para o aeroporto. Fui atendido com cortesia pelos funcionários, sempre me arriscando ao máximo no italiano que eu havia praticado ao longo de meses, com meu simpático professor Davide Rossi.

No último guichê, ouço da atendente que a caixa com a minha bicicleta me esperava do outro lado do grande saguão de bagagens. Um alívio me veio ao enxergar a grande caixa de papelão, e um choque em ver ao lado da caixa uma pessoa muito parecida com a minha tia Adriana, já falecida. Era uma senhora que cuidava da área, e a semelhança física era impressionante. Minha tia Adriana era a mais italiana dos membros da minha família, mesmo nunca tendo, acredito eu, visitado a Itália. Eu não entendia esse amor. Para mim a Itália era o país que ganhou do Brasil na Copa de 82, e não um país ao qual eu pertencesse. Morando lá, meu sentimento se transformou em um grande amor. Portanto, encontrar uma sósia da minha tia ali me trouxe uma sensação de estar sendo abençoado naquela aventura, mais ainda quando ela sutilmente me encorajou a montar a minha bicicleta ali mesmo.

Não sei quanto tempo levei, talvez uma hora ou mais. O fato é que consegui remontar a bicicleta inteira, encaixei todas as bolsas e aparentemente não sobrou nem faltou peça alguma. Uma façanha rara na minha carreira de mecânico.

Após o susto com o atraso da bike, tudo no seu devido lugar.

Saí do aeroporto com o Sol já alto e temperatura amena, talvez uns 20 graus. Na bicicleta eu notava apenas o câmbio um pouco desregulado e o freio dianteiro baixo demais. Sabia que meu pneu traseiro estava com câmara de ar, e não líquido selante, o que não seria ideal para a prova. Mas dava para seguir. Em alguns minutos, o caminho para Roma entrava em uma ciclovia que seguiria paralela ao rio dos rios, o Tibre, ou Tevere em italiano. O rio de Roma, o rio da civilização ocidental. A ciclovia era perfeita e deslumbrante, com belas ruínas e famílias passeando a pé ou de bicicleta naquele domingo de início de primavera.

Indo sem pressa, em cerca de duas horas eu estava na Roma que conhecia. Cheguei pelo Tevere, inclusive seguindo pela pista de esportes que margeia o rio em direção ao Vaticano, Trastevere e Piazza Navona. Depois de dois anos de pandemia, a mera possibilidade de viajar seria por si só uma alegria imensa. Naquele lugar então, eu ria sozinho.

Antes mesmo de ir para o meu apartamento alugado, almocei na Pizzeria da Baffetto (Pizzaria do Bigodinho), que tem uma extraordinária pizza ao estilo romano e ingredientes muito saborosos. Para minha grande honra, os garçons me reconheceram e não só autorizaram como pediram que eu guardasse a bicicleta no mítico depósito da Baffetto, um lugar levemente bagunçado mas que guardava, além de cerveja e refrigerantes, alguns séculos de História. A pizza foi a cereja do bolo e o apartamento que aluguei foi muito acima de todas as expectativas.

Pizzeria da Baffetto. Imperdível.

Passei dois dias e duas noites muito felizes em Roma. Eu trabalhei naquela semana, não foram dias de férias. O que fiz foi levar meu laptop para a rua e trabalhar de igrejas, calçadas, em frente ao Castelo Sant’Angelo, aproveitando o enorme privilégio de ser um nômade digital.

Piazza Navona.

Roma—Frosinone

Acordei às 4:30h da manhã da terça-feira, dia 19 de abril, para começar a pedalada rumo a Pompeia. Ao sair do apartamento, a luz do dia ainda não havia aparecido e a temperatura era de 7 graus. Pedalar com uma bicicleta gravel pelos paralelepídos característicos do centro histórico de Roma, deserto àquela hora, foi um breve delírio. Virei à esquerda na Via del Governo Vecchio, andei alguns quarteirões, logo à direita na pequena Via Sora onde morei em 2017, e poucos metros adiante outra esquerda na avenida Vittorio Emanuele. Em poucos minutos o céu já ganhava um tom mais claro e eu chegava em frente ao Coliseu. Ao fundo, baixa e quase cheia ainda, a Lua se encaixava no cenário.

Soninho, mas vamos que vamos.

Planejando o trajeto de Roma a Pompeia preferi não usar o percurso do Italy Divide, ainda que fosse no sentido inverso. A ideia era conhecer lugares diferentes, ao mesmo tempo usando uma rota menos desgastante. Escolhi um caminho pelo interior que passaria por Frosinone, saindo de Roma por uma estrada muito antiga, a Via Casilina.

A saída da capital lembrou a saída de qualquer grande cidade, passando por bairros de residências mais simples e antigas áreas industriais, ainda que em outra proporção se comparada a uma Avenida Brasil carioca. A Via Casilina é bastante urbana e parece mais outra avenida do que uma estrada. As primeiras horas de viagem, portanto, envolveram muita atenção com o tráfego. O Sol subia e aquecia o ar, e fui removendo camadas de roupa. Parei para um café na altura da cidade de Laghetto. Pedi um cappuccino e ganhei um upgrade: ele veio numa taça imensa daquelas de milkshake, transbordando. Saí feliz pelo carinho e por ter conseguido conversar com o atendente indiano com forte sotaque de Napoli.

Sabendo que eu teria que trabalhar ainda naquele dia, não fui exatamente passeando. Segui em um bom ritmo pela Casilina até chegar em Frosinone na hora do almoço. Foram 93 quilômetros. Antes de procurar um hotel, passei em uma excelente loja e oficina, a Toni Bike. A princípio o proprietário e mecânico hesitou em me atender — a fila de bikes aguardando cuidados era visível e enorme. Ao perceber que se tratava de um cicloviajante, ele foi mudando de ideia. Depois que contei para ele que ia para o Italy Divide, ele parou tudo o que estava fazendo, instalou selante no meu pneu e regulou o câmbio da bicicleta com maestria. Eu começava a entender a paixão do italiano pelo ciclismo. Ele me cobrou somente 5 euros pelo serviço e ainda me deu um protetor contra o frio no pescoço e no rosto com os logotipos da sua loja, que eu usaria bastante na prova.

Fiquei no primeiro hotel razoável que encontrei, tomei um banho, abri o computador e trabalhei até a noite.

Frosinone—Pompeia

Acordei bem antes da quarta-feira clarear. Apesar do plano inicial de dividir o trajeto até Pompeia em pequenas prestações, a previsão do tempo dizia que no dia seguinte choveria bastante. Eu estava viajando com um laptop nas costas, e não poderia me arriscar a molhar minha mochila. Decidi pedalar até Pompeia naquele dia mesmo. Ainda no escuro, eu estava de volta à via Casilina seguindo para o sul.

Fui me aproximando do litoral em um percurso que teve boas paisagens. O trajeto criado pelo Google Maps me levou por estradinhas de terra bloqueadas e pontes em que tive que empurrar a bike. Não foi muita coisa, foi divertido e foi bonito. Quando cheguei no litoral, a verdade é que não passei quase tempo nenhum à beira-mar, e sim em uma estrada paralela às praias. Passei por cidades como Mondragone, já na região da Campania, conhecida pela criminalidade até não muito tempo atrás. Dizem que para entrar lá as pessoas tinham que pagar pedágio para a turma local. Não me pediram absolutamente nada e a cidade também não mostrou charme nenhum, apenas uma sequência de lojas e restaurantes na avenida.

O Google Maps propiciou caminhos interessantes.

A hora do almoço não estava longe quando comecei a me aproximar de Napoli. O trajeto previsto passaria bem por dentro da cidade. Para mim esse caminho parecia bom, porque seria diferente do que eu faria em sentido oposto no Italy Divide. Eu estava em um trecho muito plano, com ruínas e grandes áreas que pareciam ser de cultivo, porém sem nada plantado naquele momento. Depois de uns 30km assim, a cidade começou a se montar. Primeiro galpões, depois algumas fábricas pequenas, em algum momento uma birosca, até tudo se transformar em uma avenida. Passei por muitos africanos de bicicleta também. Não pude deixar de notar que alguns motoristas eram muito grosseiros com os africanos, buzinando e tirando finas. A verdade é que o racismo existe com força na Itália, algo que eu já sabia, havia testemunhado de outras formas, e lamento muito.

Zona rural a norte de Napoli.

Ainda na entrada de Napoli, parei em um bar. O conceito de bar na Italia é muito diferente do bar no Brasil. Na Italia, bar é onde se toma café e faz pequenos lanches. É possível fazer uma fézinha em um caça-níquel eletrônico nos bares mais rasteiros. Comi uma pizza barata, enchi as garrafas e não fiz fé nenhuma.

Poucos quilômetros depois emparelhei com uma ciclista usando todo o equipamento de quem pedala a sério, inclusive uma bela bicicleta Bianchi de estrada. Embaixo do selim ela tinha uma bandeirinha de arco-íris, que por lá poderia simbolizar simpatia LGBT, apoio à Ucrânia contra a Rússia, ou talvez até uma mistura das duas coisas. Em movimento ela me perguntou de onde eu vinha e para onde eu ia. Contei. Falei do Italy Divide. Ela parecia saber da prova, e me disse entusiasmada que já tinha feito essa viagem de bike até o norte da Itália, e que tinha gostado muito. Ela ofereceu de me guiar por uns 10km por um caminho mais bacana e fora das autoestradas. Aceitei e de fato fomos por uma vicinal que chegou no centro pelo alto da cidade, oferecendo um visual bem bonito. Nos despedimos conversando mais um pouco. O nome dela era Imma, ela gosta de fazer longas distâncias e eventos randonneur pela Itália—inclusive faria um brevet Napoli-Roma-Napoli de 400km no sábado seguinte. Trocamos Instagram e segui em frente.

A Imma me guiou por Napoli.

Napoli é uma cidade de extremos que lembra o Rio de Janeiro. Mar e morros, uma baía, problemas sociais, crime, charme e calor humano. Na outra vez que estive em Napoli entramos na cidade por outro lado. Desta vez, desci para a baía passando por um lindo parque e depois uma avenida de paralelepípedos cheia de construções antigas e muito bem conservadas. Foi maravilhoso. O trânsito caótico napolitano é celestial se comparado ao carioca. Acabei chegando na estação de trem, virei à esquerda e cheguei na zona portuária do Rio. Sim, era a de Napoli. Mas ambas são iguais.

Apenas segui em frente e a cidade foi acalmando um pouco. Em meia-hora cheguei a Herculano, cidade vizinha a Pompeia e que também foi completamente devastada junto com a irmã mais famosa. A bem da verdade, em alguns lugares eu pedalei por terra que foi criada pela própria erupção do Vesúvio há 2000 anos, e que antes era mar. Já eram umas 16 horas quando cheguei ao Camping Zeus, em que eu me hospedaria até o sábado, e onde a prova largaria. O conceito de camping na Italia e na Europa frequentemente inclui uma estrutura para motor-homes, banheiros limpos com chuveiros, máquinas de lavar e secar, e frequentemente quartos de verdade para quem quiser algo mais convencional. Eu já vinha com reserva para um quarto, e nele entrei depois de quase 170km pedalados. Tomei banho, comi alguma coisa e abri o computador para trabalhar.

O Vesúvio. Elevação: 1281m.

Os dois dias seguintes foram de descanso, lavanderia, trabalho e alguns passeios por Pompeia. A visita à Pompeia histórica foi tão impactante quanto da primeira vez. Ali existem muitas construções de gigantesca importância e utilidade para entendermos a História do Ocidente. O anfiteatro muito bem preservado é apenas um dos lugares famosos de lá, e onde fiquei um bom tempo desta vez. Ao mesmo tempo, pensar e sentir aquela catástrofe não é algo simples. Um peso foi batendo na alma.

De volta ao camping, fui encontrando outros participantes do evento. Os primeiros que cumprimentei, logo na chegada, foram os americanos Gary Johnson e Nelson Carter. Ambos estavam na casa dos 60 anos, o primeiro bastante alto e forte, o segundo não tão alto e mais magro: o biotipo do ciclista. Muito simpáticos, eles me contaram que pretendiam fazer a prova o mais devagar possível, aproveitando ao máximo a viagem. Eu comentei que pensava da mesma forma, e imaginava completar o percurso em 6 dias. Eles riram e avisaram que o plano deles era de terminar em até um mês. Aí eu ri também. E ainda riria mais da minha própria estimativa.

Esse é o espírito do Italy Divide. Não há tempo limite para os participantes cumprirem o trajeto e serem considerados “Finishers”. Eu ainda entenderia muito mais detalhes sobre o espírito da prova, que no fundo reflete o jeito de ser do Giacomo Bianchi, criador e organizador de tudo aquilo.

Na noite anterior à largada haveria uma pizza e refrescos no restaurante do camping, reunindo os participantes. Tendo trabalhado até tarde para entregar tudo o que pudesse antes de entrar de férias, cheguei no restaurante já depois das 21 horas. Todas as mesas estavam lotadas. Era bastante gente, umas 200 pessoas. Talvez transferindo para o jantar o desencaixe que vinha sentindo no trabalho, fui jantar sozinho na cidade, voltei e dormi cedo.

Pompeia: só indo mesmo pra entender (eufemismo para “só tirei fotos ruins”).

Dia 1: Pompeia — Scauri

O dia amanheceu ensolarado e agradável. No café da manhã mais uma vez se via a proporção do evento, muito maior do que todos os outros que eu havia participado até então. Dividi mesa com Gary e Nelson. Fiquei sabendo que o Gary era relativamente novato em eventos de longa distância, e estava apreensivo. Já o Nelson tinha anos de experiência com cicloturismo e competições, e estava bastante tranquilo.

Voltei ao quarto para fazer as últimas arrumações na bicicleta, separando também uma mochila que iria no caminhão dos organizadores até a chegada. Meu quarto era no térreo e tinha uma varanda que se comunicava com as varandas de outros quartos. Fazendo meus ajustes na varanda, conheci meu vizinho: Marin de Saint-Exupery. Ele perguntou sobre as minhas expectativas, e falei para ele da minha vontade de aproveitar o trajeto com calma e completar em 6 dias. Lembro de ter falado que quando fizesse esta prova pela terceira vez, aí sim ia querer competir — de onde essa ideia saiu, eu não sei até agora. Marin me contou que trabalha como courier ciclístico na Suiça, já tinha feito diversas provas de ultra distância e largaria para vencer em 3 dias. Falei que torceria por ele, e algo me disse que ele não estava iludido.

A largada que estava prevista para as 11 da manhã foi se atrasando. Um oceano de ciclistas conversava e tomava café ou apenas descansava aguardando. A grande maioria das bicicletas era gravel, mas se via mountain bikes também, de todas as marcas que se pode imaginar.

Já era 12:20 quando Giácomo começou sua preleção. Ele recomendou cuidado com o trânsito napolitano, que aproveitássemos ao máximo o percurso, e repetiu seu leitmotif sobre o evento: “[sic] Is not a race! (não é corrida!)”. Ao final, ele recomendou que não atravessássemos os Apeninos à noite, a não ser que fôssemos o Jay Petervary (famoso ultraciclista que mora no gélido Idaho e já venceu o Italy Divide, para não falar de provas no Alasca). Eu nem sabia o que eram os Apeninos, e em rápida busca no celular concluí que era o trecho entre Florença e Bolonha. Ainda tinha chão até lá.

A largada já tinha sido dada, mas na rabiola ainda tinha trânsito.

Era pouco mais de meio-dia e meia quando finalmente largamos. Saí mais para o final do imenso comboio. Viramos à esquerda saindo do camping e margeando à direita as escavações históricas de Pompeia, numa grande emoção. Nem 300 metros mais tarde, viramos à esquerda. Quem como eu estava na traseira do pelotão foi surpreendido pelo semáforo sinalizando a passagem de um trem. Ficamos para trás e “perdemos” uns 3 minutos esperando o sinal ficar verde. A verdade é que nunca mais eu alcançaria ninguém que havia passado antes do trem.

Os primeiros 15km são urbanos. No começo um bloco de dezenas de participantes, misturando festa e nervosismo. Em seguida a estrada de asfalto começa a apontar para cima, e segue com uma inclinação suave por alguns quilômetros. Todos ali já sabiam: aquilo era o pé do Vesúvio. No quilômetro 20 a subida fica séria. No início ainda ficamos no asfalto, mas em pouco tempo o trajeto vira um parque, e a estrada passa a ser de terra. Lembro de andar próximo a algumas pessoas com quem eu pouco conversei ali, e que mais tarde reencontraria. Vou aprendendo que, ao menos para mim, os inícios de eventos longos são momentos de ficar mais em silêncio, processando a adrenalina e a antecipação do que está por vir.

A subida do Vesúvio tem 8km de extensão e ganho de quase 900 metros em altitude. Não seria nada demais se não se tratasse do Vesúvio, com sua História e cinzas vulcânicas de muitos centímetros de profundidade. A estrada vai ficando cada vez mais solta até que não resta alternativa a empurrar a bike. Eu tentei pedalar o máximo possível enquanto quase todos estavam empurrando a bike. A bem da verdade, ao longo dessa prova recalibrei minha relação com empurrar a bike, aceitando muito melhor que empurrar pode ser uma ótima ideia.

O cenário vai ficando mais árido conforme subimos. A vegetação vai perdendo árvores, e aquelas que sobravam ainda estavam peladas do inverno. Só chegando no topo pudemos ver um pouco de Sol novamente, atrás de um pesado mormaço.

A descida começa antes de chegarmos à cratera, e o cenário muda rápido. Logo avistamos a Baía de Napoli e a grande cidade, tudo muito bonito. Uma parada no mirante para absorver o visual e ser ultrapassado por múltiplos “adversários”, depois completo o mergulho.

O trajeto do Italy Divide é todo desenhado para percorrer os lugares mais bonitos do país e de cada cidade que cruzamos. Napoli abre os trabalhos sem economizar: passamos pelo Palácio Real, pelo Castelo Novo e pela Piazza del Plebiscito, que lembra muito a entrada do Vaticano. À esquerda, o mar. Uma rápida parada em um supermercado, compro umas fatias de pizza, água e suco. Seguindo entro na Baía de Pozzuoli, depois uma subida no Monte di Procida e outro visual estonteante: o Vesúvio ao fundo, atrás das duas baías que percorri.

O Vesúvio no horizonte, mais à esquerda.

Descendo o Monte di Procida começa o primeiro dos dois grandes trechos planos da prova. Seguimos o litoral da Campania rumo ao norte, pelo asfalto. A tarde caía e o pedal rendia bem. No começo estive com vários participantes. Notei que muitos seguiam em pequenos pelotões ou em duplas, como numa prova de ciclismo de estrada em que um atleta quebra o vento do outro. Em quase todos os eventos de bikepacking, os inscritos no modo solo são proibidos de pedalar próximos. Aos poucos fui entendendo que essa prova era bem livre, inclusive em relação ao caminho.

Esse foi um dos únicos trechos sem grande interesse a cada quilômetro de toda a prova, mas também foi o único em que o pedal rendeu bastante.

Já próximo das 21h cheguei a Scauri, uma das primeiras cidades litorâneas do Lazio. Eu carregava um saco de bivaque e colchão de ar para dormir acampado se fosse necessário, mas preferia dormir em pousadas ou hotéis todas as noites para descansar bem e aproveitar ao máximo a viagem, evitando sacrifícios a não ser o de algumas horas de sono.

Sem reserva em pousada, perguntei aos moradores onde poderia dormir e toquei em um albergue minúsculo, na verdade uma casa. Lá dentro, no escuro, vi dois participantes do Italy Divide. Eles mal falaram comigo, a não ser para informar que eles tinham feito reserva e aquele era o único quarto. Ouvindo o diálogo, uma vizinha se ofereceu para me ajudar e sua mãe insistia amavelmente para que eu entrasse e tomasse um café com elas. Eu imaginava como estaria fedendo àquela hora e o quanto eu não queria tomar café justo na hora de dormir. E a senhora se comunicava comigo em um dialeto, misturado a uma dificuldade de fala da idade provecta, mais a minha cognição prejudicada pelos 150km que eu havia pedalado até lá. Ela era muito amável, mas agradeci e segui para um Albergo Aurora.

No hotel, o atendente me encaixou em um quarto de funcionários sem janela, porém limpo. O preço: 80 euros. Apenas mais uma vez em que fui roubado nesta vida, mas foi o preço que paguei por não querer me travar no planejamento e pela pouca experiência na empreitada. Tomei banho e fui jantar no restaurante mais próximo: salada, um enorme prato de macarrão e uma cerveja.

Voltei para o hotel perto das 23h, coloquei o despertador para as 4, mandei uma rápida mensagem para a família e para o Nuno, e desmaiei.

Dia 2: Scauri — Velletri

Acordei no primeiro toque do despertador. Abri o celular e vi as respostas do Nuno. Nada extremamente específico, um misto de lembretes importantes sobre gestão da mente/tempo/corpo e encorajamento, este último o mais importante de tudo. Boa parte da razão de ter o Nuno como técnico era mesmo ter alguém me encorajando: na minha família ninguém me apoiava muito nessa ideia, mais preocupados que eu permanecesse vivo.

Saí do quarto e vi duas bicicletas de cabeça para baixo no saguão do hotel. Pelas placas da prova eram dois austríacos. Ainda estava escuro quando subi na bicicleta e comecei o segundo dia.

Em menos de meia hora eu havia entrado em uma área mais rural. Com o dia querendo amanhecer, vi atrás de uma casinha antiga alguém brotando de seu saco de bivaque. Faz lembrar uma borboleta saindo do casulo. Sem dúvida era alguém da prova, até pela bicicleta. Ele não estava muito perto, e claramente havia tentado escolher um lugar discreto para dormir, então apenas segui em frente.

Voltando para a estrada principal, quase chegando em Sperlonga, encontrei uma lanchonete aberta. Entrando, vi mais dois participantes já tomando seus cafés. Eu tinha ficado perto deles em vários momentos no dia anterior, mas não tinha conversado e nem reparado muito em quem seria. Para minha surpresa, agora com um deles sem capacete, vi que era o Massimo Muttoni, o único italiano a vir para o Bikingman Brasil 2021 e que completou aquela prova durante a festa de celebração, sendo aplaudido por todos. Acabou sendo um café da manhã bem alegre. Fiquei conhecendo seu amigo Alex, de Saiano—cidadezinha na Lombardia que, dizem alguns familiares, me legou o sobrenome.

Reencontrando o Massimo no café da manhã em Sperlonga.

Com o Sol aparecendo, toquei em frente. Ainda de manhã comecei uma subida duríssima: o Circeo. É uma falésia em que chegamos a 400 metros de altitude, frente a um mar muito azul. Não é tão alto assim, porém a estrada é um rio de pedras enormes e soltas em curvas de nível acentuadas. Hora de empurrar e muito. Sorte que o dia estava lindo.

O Circeo.

A travessia levou boa parte da manhã. Depois eu soube que muita gente “bivacou” nessa subida na noite anterior — só imagino o frio, mas o visual devia estar excelente. Na descida passamos pelo primeiro trecho de trilha fechada, terra e lama da prova. Era um dos diversos bike parks que atravessaríamos, onde as mountain bikes se saíam bem melhor do que as gravel. O Italy Divide tem muitos trechos de mountain bike de verdade, diferente de um Bikingman Brasil ou dos brevets mistos que temos no Brasil, que apesar das grandes dificuldades acontecem sempre em estradas mais pedaláveis.

Árvores caídas fractalmente no começo da descida do Circeo. Depois piora.

Quem não é bom de mountain bike tem que ir tocando as trilhas com calma e paciência. É o meu caso. São trechos que podem ser muito divertidos, ou um suplício, dependendo de como está nossa cabeça. Consegui me divertir, mas sempre com bastante cuidado para não bater o câmbio em uma pedra ou acabar com minha prova de algum jeito mais criativo.

Concluído o bonito parque, estamos de volta à beira-mar. Debaixo de Sol forte, o trajeto segue pela avenida da praia até um desvio para a direita em Sabaudia. Já estavamos na província de Latina. Essa área pantanosa foi drenada sob ordens do ditador fascista Benito Mussolini em 1933, e a cidade construída ali. A arquitetura é muito diferente do resto da Itália, e bem característica do fascismo italiano: caixotes sem nem um vestígio de charme. Já era uma da tarde e almocei uma salada com tiras de carne na praça central. Fiquei imaginando o que as pessoas dali pensavam de morar num lugar tão associado ao fascismo. Claro, não tive coragem de perguntar.

Saindo da cidadezinha, vi um “alimentare”: uma vendinha. O senhor me disse que a mozzarella estava esplêndida, que por ali haviam ótimas fazendas de búfalas. Convém acreditar nessas pessoas. Levei duas, mais umas 8 “clementines”, pequenas tangerinas que estavam na época. A mozzarella legítima, italiana, é tão diferente das que comemos no Brasil quanto as pizzas napolitanas são diferentes das que comemos no Rio de Janeiro. É como comer uma feijoada no Cacique de Ramos depois de uma vida comendo feijoada na Groenlândia. As bolas de queijo, do tamanho de uma maçã, vêm em um saco de plástico com água e ficam muito úmidas e macias. A mistura de líquido, sal, carboidrato, proteína e placebo deu grande energia. As clementines hidratavam também, e alegravam a tarde ensolarada atravessando um lindo bosque por estradas de cascalho.

Depois de atravessar alguns lagos, chegou a hora de me despedir do litoral. Uma parada no pier de Capoportiere, um adeus ao mar, e segui perpendicularmente à costa. Atravessei Latina e comecei a subir: primeiro foi Norma, uma das muitas e maravilhosas cidades medievais (ou anteriores a isso) em cima de serras e morros. Essa subida foi longa, e nela vi diversos participantes da prova. Passado o nervosismo da largada, as pessoas davam os primeiros sinais de querer se comunicar. Diferente do Brasil, ali as pessoas pareciam mais reservadas, talvez pela variedade de línguas e culturas. Chegando a Norma, parei em uma loja de conveniência e conversei um pouco com o Michal, da República Tcheca. Ele parecia muito bem, mas sofrendo um pouco com o calor. A cidadezinha era muito bonita, mas a ideia era seguir bem mais, ainda que eu não tivesse ideia até quando ou onde.

Dessas búfalas vem a melhor mozzarella do mundo.

Seguimos até Cori, e uma francesa me perguntou onde eu iria dormir aquela noite. Falei que não sabia. Ela falou que tinha reserva em Velletri. Anotei o nome mentalmente, e olhando o mapa me pareceu um bom ponto para não dormir tarde. Outros ciclistas que cruzei falaram o mesmo.

Cori está lá em cima da serra.

A noite veio chegando e o tempo foi ficando fechado. Estávamos a uma altitude de 500m. Não é muito, mas o clima tinha mudado. Começou a esfriar com o cair do Sol. Em um dado momento, perguntei para algumas pessoas na estrada a quantos quilômetros eu estava de “Velétri”. Ninguém me entendeu. Depois de um tempo, um deles falou: “Ah, Velêtri? Uns 10 quilômetros.”

Cheguei a Velletri com um resto de luz do dia. É uma cidade com a parte baixa e a parte alta, sendo a parte alta o centro histórico. Ainda na parte baixa, parei em um supermercado e comprei lanches para comer no quarto da pousada e nem precisar sair para jantar.

Ao chegar na parte alta, vi alguns participantes da prova em um café, comendo ou tentando resolver pouso para a noite. Conheci uma dupla da Inglaterra, pai e filho, que falaram que iriam para um hotel bem lá no alto da cidade, e que teria vaga. Tom, de 66 anos, e Oliver, de uns 30 e poucos. Começava a chover e fui sozinho. Chegando lá, o hotel era espetacular, com um restaurante sensacional. Tom e Oliver chegaram logo depois. Tom falou que roncava muito e perguntou se eu queria dividir um quarto com o Oliver. Para mim estava bom: era uma economia. Acabamos dormindo na mesma cama, algo muito comum em eventos de longa distância, e extremamente tranquilo já que todos estão semimortos mesmo. Ninguém se mexe.

Eles desceram para jantar, estavam em modo curtição extrema. Eu tinha que estar de volta a Roma 8 dias depois da largada para encontrar com minha família, e ia percebendo que eu até que estava apressado, na comparação com a turma. Sendo assim, comi um pouco do que tinha comprado, tomei um banho, lavei as roupas, organizei as coisas, falei com a família, mandei uma atualização para o Nuno e fui dormir tendo curtido muito esse primeiro dia inteiro de prova.

Tom e Oliver na recepção do hotel.

Dia 3: Velletri — Viterbo

Acordei às 4 da manhã. Para não incomodar o Oliver, saí do quarto e fiz os preparos para o dia em uma área no térreo do hotel. Fiquei um bom tempo perdido até encontrar a bicicleta, que na Itália eles nunca permitiram que ficasse no quarto comigo.

Havia diversas bicicletas da prova junto com a minha, certamente mais de dez. Montei minhas sacolas na bike, ouvi as mensagens do Nuno e saí ainda com o escuro da noite, descendo tudo o que eu havia subido da cidade para o hotel.

Hoje era dia de passar por Roma. Antes da prova, eu imaginava dormir muito perto de Roma na segunda noite, talvez depois de Roma até, mas não foi bem assim que aconteceu. Antes eu precisaria atravessar uma área, e um parque, chamados Castelli Romani.

Agora o mountain bike foi sério. Um trecho de pouco mais de uma hora, e com a trilha molhada da chuva ao longo da noite. Felizmente o caminho não estava encharcado, e pude pedalar tudo. Subidas inclinadas e curtas me fizeram suar mesmo no frio e na névoa do amanhecer. Já com um pouco de luz do dia, cheguei a Nemi, a menor vila dos Castelli Romani, e um lugar de imenso charme. Dizem as lendas que Nemi compartilha misteriosas coincidências com a cultura Celta. O bosque no entorno do vilarejo, o mesmo que eu acabara de cruzar, guardaria propriedades mágicas e sagradas. Isso eu fui saber muito mais tarde. Naquele momento apreciei por alguns instantes a vila ainda deserta, parado em uma fonte, enchendo minhas garrafas de água.

Fonte em Nemi.

Lamentando não ter todo o tempo do mundo, e não ter coragem de abandonar tudo e me radicar em Nemi, segui em frente. Voltei a uma estrada de terra, desta vez mais aberta e plana. Vi dois ciclistas me alcançando. Eram o Massimo e o Alex, eles realmente estavam indo juntos. Eles me contaram que também tinham dormido em Velletri. Indo num bate-papo, logo vimos o Lago Albano e chegamos a Castel Gandolfo. Esta cidade é quase um entreposto da Igreja Católica. O Papa tem uma espécie de casa de campo ali, e vemos muitos imóveis com a bandeira amarela e branca do Vaticano. O lugar é muito bem cuidado, até mesmo para os padrões italianos, e a vista do lago a partir da cidade é memorável.

Tomamos um café da manhã ao lado da praça central, cappuccinos com folheados e um sanduíche de porchetta talvez um pouco prematuro dado o horário, se fôssemos pessoas normais e não viajantes consumindo 9000 calorias por dia. O Alex contou histórias de Saiano, e ambos falaram um pouco de como se conheceram em uma edição passada do Italy Divide e desta vez combinaram de ir juntos.

Agora era hora de entrar em Roma, e através de nada menos do que a Via Appia Antica. A bem da verdade, nós já tinhamos percorrido bons trechos da Via Appia desde a largada, já que ela começa em Brindisi, quase na ponta do salto da bota que é o mapa italiano. A Via Appia talvez seja a estrada mais “histórica” do Ocidente, ligando o sul do Mediterrâneo a Roma desde antes de Cristo. A entrada para Roma guarda muito da sua forma de milênios: diversas ruínas, museus, sepulturas, catacumbas, e o calçamento com pedras gigantescas para os padrões atuais.

A sensação de estar em uma viagem no tempo era bem forte. Parei muitas vezes, curti as ruínas, a vegetação, as pedras do pavimento, as pessoas que passeavam ali também. A única coisa que me preocupava era meu freio dianteiro, que já vinha rateando desde a chegada na Itália. Nas descidas da manhã, ele simplesmente parou de funcionar.

Certamente em Roma eu encontraria um mecânico para olhar aquele freio. Só um detalhe poderia atrapalhar: era feriado naquela segunda-feira, era o Dia da Liberação (do Nazifascismo). Era por isso que havia tanta gente passeando em plena segunda-feira. Uma vez dentro da cidade, perguntei para um ciclista local se ele saberia de algum mecânico trabalhando naquela manhã. Ele respondeu categoricamente que eu não encontraria ninguém. Eu ainda tinha o freio traseiro, e aquele dia não tinha previsão de grandes descidas. Acreditei no romano e não investi na busca de uma oficina.

Roma foi uma sequência de cartões postais: Coliseu, Circo Massimo, Tevere, Castel Sant’Angelo, Vaticano. Mesmo já tendo visitado esses lugares algumas vezes, é especial chegar de bicicleta. Difícil encontrar uma cidade mais bonita que Roma.

Castel Sant’Angelo.

O feriado fez da saída de uma Roma uma gincana. As avenidas na beira do Tevere estavam todas fechadas para um desfile. Inventei um caminho paralelo até o Foro Itálico, passando por uma avenida expressa sem acostamento, na contramão. Fui bastante xingado pelos motoristas.

Finalmente cheguei à ciclovia que beira o rio e me levaria para o norte. A cidade rapidamente vai ficando sossegada, e os prédios vão dando lugar a gramados imensos no entorno. Atravessei bairros e depois cidades do Lazio, pedalando no asfalto plano que rendia bem.

Era começo da tarde, e recebi mensagem do Brasil: meu Clube de Investimentos tinha recebido o ok da CVM e da corretora para começar a funcionar. Eu já estava esperando por essa notícia havia uns 2 meses. Motivo de comemoração, é claro. Porém, de acordo com as leis, eu e 2 cotistas teríamos que fazer nossos depósitos iniciais naquele dia mesmo.

Não sem motivo, minha memória sobre os lugares em que passei nas horas seguintes é vaga. Lembro mais de ficar pedalando e telefonando para o Brasil para coordenar tudo. Agradeço ao meu irmão Rodrigo e à minha esposa Stefania por ajudar. Me recordo de ter passado por um grande rebanho de ovelhas, pelo centro de treinamento do time da Lazio, por um desvio em um lindo bike park à beira de um rio, e a contínua transição da paisagem para algo mais rural e com as primeiras colinas subindo.

Deu tudo certo com a abertura do Clube de Investimentos, e o pedal estava indo igualmente bem.

O dia foi caindo com uma lentidão que não existe nas nossas latitudes. Ainda com a luz do Sol, em um sobe-e-desce até raro para aquela tarde, um grande susto: em uma descida na sombra, o piso estava cheio de limo. Eu estava rápido, e só tinha o freio traseiro. Uma derrapada e tanto, antes de uma curva fechada. Muita adrenalina jorrada na corrente sanguínea, e felizmente nada mais. Eu precisaria resolver aquele freio logo, porque as subidas estavam recomeçando.

Passada uma estrada de terra ao anoitecer, onde vi cavernas e porcos-espinho, cheguei na cidade de Viterbo. Era uma cidade de maior porte, com uns 70 mil habitantes. Estava de bom tamanho para aquele dia. Encontrei um hotel Best Western, daqueles bem padrão, e logo ao entrar vi bicicletas de outros participantes da prova. Nunca deixa de impressionar que, por mais que haja centenas de cidades e quilômetros no trajeto, sem combinar nada os ciclistas acabam tomando as mesmas decisões.

Ainda era cedo e pude jantar com toda a calma do mundo. Fui a um restaurante ao lado do hotel e jantei com direito a uma cerveja grande. Fiz chamadas de video com a família dali mesmo. Comi um tiramisu de sobremesa.

Já saindo do restaurante, vi em uma mesa três caras que obviamente estavam no Italy Divide: imundos e destruídos. Destes, eu só tinha visto um americano logo antes da largada: ele estava desesperado consertando a bike que tinha quebrado no vôo. Trocamos impressões sobre tudo até aquele ponto, e soube que os outros dois, um italiano e um tcheco, também já tinham participado da prova antes.

Comentei sobre meu freio, que ainda não havia decidido se esperava alguma loja abrir ali mesmo em Viterbo, ou se sairia bem cedo sem freio dianteiro para ganhar tempo, e buscaria uma oficina mais na frente em horário comercial. O americano, de nome Azubuike, me encorajou a esperar ali em Viterbo mesmo, usando o ditado “uma bike consertada é uma bike rápida”. Ele estava bebendo, eu estava levemente ébrio da minha cerveja, e achei que ele falou com sabedoria. Eu ia resolver esse freio em Viterbo mesmo.

Dia 4: Viterbo — San Quirico d‘Orcia

Acordei tarde: 5:30 da manhã. Agora eu já abria os olhos sozinho às 4. Meu sono durante essas pedaladas longas pode ser um desmaio total, ou todo feito de sonhos febris, com imagens misturadas e confusas. Aceito o sono que vier, e até esse ponto eu estava conseguindo dormir todas as noites em boas camas. Eu sentia uma grande sede durante a noite, acordando duas ou três vezes com a boca seca e a língua colada. Bebia de um a dois litros de água, e depois comecei a comer um pouco de sal também durante a madrugada. Isso tudo, mesmo tomando muita água durante o dia. A Itália é bem seca se comparada ao Rio de Janeiro. Ao beber água, eu sentia o líquido voltando até para os meus olhos. Após bilhões de anos de evolução, nós não passamos de esponjas.

No café da manhã encontrei os três do jantar: Azubuike dos EUA, Francesco da Italia e Ian (ou talvez Jan), que acho que vinha da República Tcheca. Eles também decidiram esperar uma oficina ali em Viterbo. Logo apareceram Tom e Oliver também. Tom me disse que precisou de um mecânico em Roma, e não teve problema nenhum em encontrar alguém no meio do feriado.

Com algum tempo até que as oficinas abrissem, o café da manhã rendeu.

Toquei o barco para o Laboratorio Cicli Tomi, um lugar bem avaliado na internet. Chegando lá, fui recebido pelo próprio Tomi. No dia anterior já tinham passado outras pessoas do Italy Divide por lá. Não foi necessário pedir prioridade, Tomi sem hesitar colocou minha bicicleta no suporte e perguntou como poderia ajudar. Conversando comigo e com outro senhor que já estava por ali, Tomi fez a sangria do óleo de freio mais outros pequenos ajustes na bike. Nesse meio tempo fiquei sabendo que o irmão de Tomi havia vencido uma Clássica de Primavera, que a família toda era do ciclismo havia 3 gerações, e que a Tomi tinha uma linha própria de bikes. Essa relação de gerações com o ofício é relativamente comum na Itália. Algumas dessas oficinas crescem muito, como a Bianchi e tantas outras. Muitas marcas italianas eram oficinas cujas bikes se tornaram populares. Outra coisa comum é as pessoas já terem ido ao Brasil, gostarem do Brasil, e gostarem de conversar sobre o Brasil. Diferente por exemplo dos americanos, para quem o Brasil normalmente é algo desconhecido, para os italianos o Brasil frequentemente é um paraíso, ou ao menos um lugar que eles gostam. O amigo do Tomi gostava, portanto falamos do Brasil.

Tomi.

Já eram 10 da manhã quando saí do Laboratório do Tomi. A bike estava boa novamente. E o caminho, que já estava muito bonito, extrapolaria os limites do maravilhamento.

A próxima cidade foi Montefiascone. Parei em um bar que, por fora, parecia algo muito simples. Entrando, era um lugar inesperadamente sofisticado. Caffè Centrale. O cappuccino era excelente. Dizem que os italianos só tomam cappuccino bem cedo. Eu tomo cappuccino a qualquer hora do dia, e nunca me criticaram.

A oscilação entre mato e luxo continuou na saída de Montefiascone. Ainda no clima do café chique, vi a estrada se transformar em um oceano de galhos caídos. Parecia que haviam derrubado todas as árvores e jogado os restos no caminho. Atravessei aquilo empurrando a bike.

Terrenos variados.

Agora, a maior parte do trajeto era estrada de cascalho. Estávamos em região de morros. O tempo continuava perfeito. Antes de chegar em Civita di Bagnoregio, alcancei Tom e Oliver, que tinham acabado de consertar um rasgo na lateral do pneu. Eles estavam só aguardando para ver se o reparo ia dar certo. Foi a última vez que os encontrei na prova.

Um dos cartões postais do Italy Divide, Bagnoregio é uma vila muito antiga construída sobre um tipo de rocha que vem erodindo ao longo dos séculos, e hoje resta uma espécie de ilha de pedra com casas antigas. Não sei até que ponto as pessoas exageram, mas dizem que é bom ir lá logo, antes que o resto da cidade desmorone.

Civita di Bagnoregio.

O trajeto da prova passa perto da entrada para Bagnoregio. A vontade, claro, é entrar ali e conhecer melhor. Mas essa vontade existe a cada metro da prova. Tomei um sorvete com o inglês Webster, também participante. Não me lembro de nada do que conversamos, mas gostei dele. E também não o encontrei mais.

A surra de beleza tinha começado. Próxima parada: Orvieto. Mais uma cidadezinha nascida de um castelo no topo de um morro. Cada cidade tem sua história, seus detalhes construtivos, seus símbolos e ornamentos. A biodiversidade da Mata Atlântica não tem paralelo na Itália, assim como a diversidade arquitetônica na Itália não tem paralelo no Brasil.

Encontrei um restaurante chinês na entrada do centro histórico. Achei bom variar um pouco a dieta. Em poucos minutos, o tcheco Michal me viu ali e entrou também. Almoçamos juntos. Eu tinha passado por ele na subida, e ele me falou o quanto estava cansado. Falou também que só tinha dormido no bivaque até então.

Começamos a falar de quilometragem, e eu comentei que estava feliz porque já tínhamos algo como 600km cumpridos. Ele me disse um número bem menor. Fui verificar no arquivo da prova, e sim, meu computador de bordo Garmin tinha exagerado meu progresso em mais de 100km. Eu nunca entendi direito o motivo desse erro do Garmin. Por alguns segundos senti um baque, mas eu estava curtindo o caminho e até então não tinha me sacrificado em nada, então não vi motivo para lamentar. Mas a ideia de completar a prova em 6 dias deixou de parecer simples.

Desci de Orvieto me perdendo um pouco pelas vielas. A tarde foi de longas estradas de cascalho em ótimo estado, e subidas razoáveis. Fazendas, rebanhos de ovelhas e ruínas misturadas a construções em perfeito estado. Passei pelo Castelo de Proceno e logo vi uma grande torre retangular no topo de uma serra, à distância no horizonte.

Foi uma longa subida, que foi se transformando em uma duríssima subida. Aquele tipo de estrada de cascalho muito claro, com ciprestes no entorno e colinas até onde a vista alcança, era familiar para mim. O Sol já começava a descer quando consegui chegar na vila daquela grande torre: Radicofani.

Dentro da vila, a sensação de familiaridade aumentou. As cerâmicas e os alimentos expostos nas lojas, os tipos de letreiros, tudo era familiar. Mas foi só quando vi um letreiro dizendo claramente “Toscana” que me dei conta que estava em casa. A região em que me tornei italiano, onde vivi alguns dos dias mais bonitos da minha vida, e alguns dos dias mais difíceis, acompanhando à distância meu pai se recuperando da cirurgia que o salvou mas também tirou parte da sua visão. Ali bateu uma emoção avassaladora, todo aquele tempo de pandemia, depois todo o treino e preparação para percorrer este caminho. Todos os périplos dos meus antepassados que saíram dali e foram parar no interior de São Paulo um século atrás, recomeçar a vida do nada. Todas as loucuras do mundo que forçam o ser humano a emigrar. Lugares maravilhosos que passam por épocas terríveis em que as pessoas enlouquecem e se tornam monstros. Todos os lugares do mundo parecem que são assim. A alegria de conseguir, de chegar ali, meio do caminho, e estar bem de cabeça e de corpo. Sentei em uma praça e chorei.

Chorei mesmo.

Minha vontade era chegar em Siena naquele dia, a fantasia era dormir na Piazza del Campo, a praça central, onde acontece o Palio di Siena. Na cidade seguinte, Bagni San Filippo, a noite vinha e jantei em um restaurante delicioso. Tomei até um vinho, com a ideia de continuar noite adentro até Siena.

No escuro, as cidadelas no alto são um colar de esculturas douradas pela luz, que vão crescendo conforme nos aproximamos. Eu estava no Vale d’Orcia, que de vale tinha pouco porque eu só encarava subida. Vieram Campiglia d’Orcia, Castiglione d’Orcia, Rocca d’Orcia. Eram quase 10 da noite quando avistei um trio de ciclistas parados na minha frente, conferindo seus celulares. Eram Azubuike, Francesco e Jan. Eles decidiam onde dormir. Estávamos perto de San Quirico d’Orcia, cidadezinha famosa pela sua lindeza. Pedalando ali à noite, eu queria chegar em Siena mas sentia estar desperdiçando o visual daquele lugar.

Decidi seguir com eles para San Quirico e dormir. Essa cidadezinha é mais uma que transcende adjetivos. É uma atrás da outra mesmo, não tem descanso, você não vai ver um troço feio pra relaxar. É só coisa muito bonita fazendo você reavaliar sua existência inteira, e cumpre a você ali tolerar isso, aceitar que isso existe. Não foi nada fácil achar um hotel com vagas. Acabamos num dos melhores hoteis da cidade. Dividi quarto, e cama, com o Azubuike. Antes mesmo de chegarmos no hotel ele expressava o quanto estava exausto, e dizia não acreditar como a gente estava tranquilo depois de pedalar tanto.

Azubuike, Francesco e Jan avaliando onde dormir.
Se um dia vir essa placa, siga por todos os lados ao mesmo tempo. Não tem erro.
Francesco “desenrolando” na recepção.
Vista do hotel em San Quirico d’Orcia.

Dia 5: San Quirico d’Orca — Impruneta

Acordei e o dia já tinha raiado. Hoje eu novamente aproveitaria o café da manhã do hotel. Sábia decisão, pois o café foi em um restaurante próximo, primorosamente decorado, e cheio de cartazes dos festivais da cidade em anos anteriores. As pequenas cidades da Europa muitas vezes promovem festivais ao longo do ano, de todas as formas de arte imagináveis, e muitas delas produzem cartazes deslumbrantes, que vencem concursos internacionais de design. San Quirico d’Orcia é dessas.

A refeição foi à altura dos cartazes. E como eu já estava com roupa de ciclista, afinal eu nem tinha outra roupa, a gerente do hotel me deu dois cafés da manhã completos, para eu me alimentar bem. Se na Itália o ciclismo é coisa séria, na Toscana é religião.

Entender como o ciclismo atingiu esse status na Itália tem sido um processo para mim. Em visitas anteriores ao país, nas pousadas e bares eu já notava as frequentes fotos em preto-e-branco de ciclistas competindo. Depois de bastante tempo aprendi que quase sempre as fotos são de Fausto Coppi e Gino Bartali, dois grandes campeões e rivais. Mais tempo ainda se passou até que eu ficasse sabendo do papel importante que Bartali desempenhou na Segunda Guerra: com seu país no auge do fascismo, Bartali atravessava o país transportando documentos falsificados dentro dos tubos da sua bicicleta. Os documentos enganavam os fascistas e salvaram a vida de dezenas, ou talvez centenas, de judeus do país. O excelente livro “O Leão da Toscana”, de Ali McConnon, conta esta história.

Vista do hotel em San Quirico d’Orcia

Saí sozinho do hotel e rapidamente estava de volta à estrada. Precisei voltar quase 10 quilômetros para retomar a rota da prova de onde eu tinha saído, e acabei passando de novo por San Quirico.

Eu estava ansioso para ver Siena novamente. Em 2018 nasceram meus dois filhos gêmeos, um menino e uma menina, e esta quase ganhou o nome de Siena. Ficou sendo Aurora. E hoje, eu entre a aurora e Siena teria um deleite completo nas Strade Bianche, as Estradas Brancas da Toscana.

Aquelas imagens de cartão postal com colinas verdes, uma estrada alva serpenteando os vales cercada de ciprestes, chegando a um castelo rodeado de vinhas. O resumo é esse. Estando lá, é muito mais. São casas com padronagens em tijolo que só se vêem ali, são aromas de jasmim e outras flores que nascem no mato e na vilas. São subidas duríssimas de se fazer, curtas mas empinadas, seguidas de descidas delirantes no cascalho mais perfeito que se pode imaginar.

O evento não passa por dentro de Montalcino, mas bem que poderia.

O piso é tão ideal para a prática do que chamamos de gravel biking que ali tem rotas oficiais, demarcadas por placas do governo. A temporada estava apenas começando, mas já se viam alguns grupos de ciclistas. Eu continuava a passar por peregrinos a pé, eles em geral caminhando no sentido oposto ao meu, especialmente depois que passei por Roma. A verdade é que o roteiro do Italy Divide é bastante inspirado na Via Francígena, caminho milenar de peregrinação entre a Inglaterra e o sul da Itália. Essas estradas percorridas há dezenas de séculos terminam por ficar muito sólidas, então mesmo elas sendo de cascalho não é comum ver valetas e erosões por ali.

Às 10:45 da manhã eu estava em Buonconvento, onde parei para um café em um bar chamado Amici di Campriano. Buonconvento, assim como boa parte do roteiro do dia, é trajeto da prova mais linda do calendário do ciclismo profissional: a Strade Bianche. O único motivo para continuar pedalando era saber que pra frente eu ainda veria mais coisas boas. Comi uma salada de frutas frescas, enchi as garrafas de água e parti com o dia já bem quente.

Pausa em Buonconvento.

O caminho para Siena alternou trechos de cascalho e de asfalto. O ciclismo de longa distância, se muito resumido, gira em torno das preocupações de um bebê: em essência é sobre comer, beber, fazer xixi, cocô e dormir. Com alguns quilômetros percorridos em minha carreira esportiva, agora eu equacionava tudo isso um pouco melhor, inclusive a parte mais imprevisível que é a intestinal. Porém, naquele meio-dia ensolarado, o urubu bicou cada vez mais forte em uma estrada ainda vazia. A duras penas consegui chegar em um posto de gasolina deserto. Torci para que o banheiro não estivesse trancado. O banheiro estava trancado. Nosso sistema nervoso é disposto de maneira tal que, numa situação como aquela, o ventre, assim como o proverbial foguete, não daria mais ré. Ele já contava com o fato consumado. Ora, o posto não tinha mais ninguém, e com minha vivência àquela altura eu seria capaz de defecar com tranquilidade mesmo diante do Sumo Pontífice. Mas foi bem mais tranquilo que isso: havia um belo campo atrás do posto, com gramíneas a uns 80cm de altura. O vital pacote de lenço umedecido me acompanhou e, graças a ele, saí refrescado e leve para tocar a chalana em frente.

No asfalto se liam os nomes dos grandes ciclistas: Pogacar, van der Poel, e mesmo o falecido e mítico Marco Pantani. Na Europa os fãs “grafitam” as estradas antes das provas importantes, e essa marcação me deu a certeza de que eu entrava em Siena pelo mesmo caminho da Strade Bianche, apenas a um terço da velocidade dos profissionais. Até porque a minha única pressa era de apreciar o entorno.

Italianos não são muito familiarizados com a letra J.

Chegar em Siena nunca foi fácil para mim. Na primeira tentativa fomos em família, ainda apenas Stefania, Olivia e eu. Não reservamos hotel e a cidade estava lotada. Acabamos nem visitando o centro histórico. Na segunda foi a mesma coisa e passamos um susto com nossos filhos Filippo e Aurora ainda na barriga da mãe. Compreendemos o conceito de “Città d’Arte” na Itália: é isso mesmo, são cidades de arte, que são elas mesmas arte, e por isso todo mundo quer ficar lá. Consequentemente, se você quiser se hospedar numa Città d’Arte, não vá como um biruta — melhor fazer reserva em alguma pousada com bastante antecedência. Na terceira tentativa nem tentamos dormir em Siena, escolhemos passar o dia lá e dormir em Montalcino. Eram as semanas de véspera do Palio di Siena, famosa e brutal corrida de cavalos que acontece na deslumbrante praça central da cidade. As “contrade”, ou seja, “bairros”, ou melhor ainda, “times” do Palio, tinham suas bandeiras estendidas por toda a cidade, cada uma das 17 contrade com o nome de um animal mitológico ou não. As contrade têm sedes, e passamos por uma delas que estava aberta a visitação. Tambores medievais com ritmos primitivos para nossos ouvidos suingados de brasileiro, e grafismos simultaneamente antiquíssimos e futuristas representando os bichos. Acima de tudo uma paixão insana pela contrada de cada um, numa relação que faz o amor do Brasileiro por seu time de futebol parecer algo tépido e racional. Siena foi amor à terceira vista.

A quarta chegada, esta, foi maravilhosa também, e muito especial. Transbordando endorfina e varado de fome, parei em uma lanchonete antes mesmo de chegar à Piazza del Campo que eu sonhava havia dias, meses. Não me lembro mais o que comi, provavelmente um panino, mas me lembro da simpatia da atendente, e que para cada pedido meu ela respondia: “Vai!”. Era a primeira vez na prova que eu ouvia essa gíria muito toscana e um clássico da cidade onde moramos, Lucca.

Fui para a Piazza del Campo. Uma praça com a forma aproximada de um casco de cavalo, em uma suave descida que quase a transforma em uma arquibancada para que os presentes vejam melhor o Palazzo Comunale e a Torre della Mangia. Duas vezes por ano aquele lugar se transforma em um estádio equestre, as ruas do perímetro cobertas de terra com duas curvas de menos de 90 graus, onde algumas dezenas de cavalos, e alguns cavaleiros, viram suas vidas acabar. Um ritual insano, cruel com homens e animais, mas de alguma forma e por um caminho extremamente tortuoso, fascinante. A verdade é que eu ainda sei muito pouco sobre tudo que envolve o Palio. Mas continuo aprendendo.

Fiquei talvez 20 ou 30 minutos na Piazza del Campo. Deitei um pouco no chão ao lado da bicicleta, absorvendo os raios de sol que caem na mesma geometria da praça. Uma barraca vendia souvenirs, comprei um bordado da cidade — eu vinha colecionando esses bordados desde a largada, o mais bonito era um do Vesúvio. Pedi para um casal fazer fotos minhas para sempre lembrar daquela realização e daquele momento de saúde e alegria.

Só alegria.

O próximo grande objetivo agora era Florença. Eu não entrava nesta tarde com grandes expectativas, mas isso era porque eu não me lembrava que passaria pelo Chianti, uma espécie de serra de colinas muito famosa pelos seus vinhos. Confesso que eu não me lembro mais das subidas do Chianti: me lembro sim de entrar em duas ou três cidadezinhas bastante charmosas como Radda in Chianti e Greve in Chianti. Lembro de ver muitas coisas sobre bicicletas nas lojas por onde passava. Um pôr do sol eloquente no mato e o anoitecer atravessando a Piazza de Greve in Chianti.

Eram mais de 10 da noite quando cheguei à pequena cidade de Impruneta. Mais uma vez eu tinha recebido a dica de pouso de outos participantes, neste caso do Francesco e do Ian. Ali eu estava a apenas 20 ou 30km de Florença, e seria muito mais fácil encontrar onde dormir. A cidade já estava deserta e sonolenta. Encontrei uma pizzaria quase fechando, apenas o dono e seu amigo bebendo a saideira no balcão. Aquele chope me hipnotizou de modo tal que esqueci tudo o que eu precisava fazer: perguntei ao dono se não teria um daquele para mim. Compreendendo meu estado físico e espiritual só de conferir o meu semblante, o dono alegremente me trouxe um chope dos grandes. Meio copo mais tarde consegui perguntar se ele indicaria algum hotel e pousada. Ele: “Ma certo, da Giuseppe!”. Desembainhou o celular, trocou meia dúzia de palavras, desligou, apontou com o dedo uma construção do lado oposto da praça e me disse: é ali, “Vai!”. E nem me cobrou pelo chope.

Dia 6: Impruneta — Madonna dei Fornelli

O senhor Giuseppe era a serenidade em pessoa. Seu hotel não era luxuoso, mas era bem cuidado e se notava na decoração um gosto por cultivar memórias. Dormi como um anjo, ou como alguém que já pedalava havia 5 dias, e acordei animado com a perspectiva de ver Florença e, quem sabe, Bolonha naquele mesmo dia.

Senhor Giuseppe e seu hotel em Impruneta.

Giuseppe me preparou um café simples bem cedo, o que me permitiu estar na bicicleta sem muita delonga. Impruneta, eu percebia agora, era quase um subúrbio de Florença, um degrau abaixo do Chianti e um degrau acima da capital. Peguei muitas descidas em ruas estreitas com o Sol ainda baixo, passando por casas lindas.

Ainda com a manhã fria enxerguei ao longe os telhados de Florença. O domo inconfundível da catedral, criado por Filippo Brunelleschi, xará do meu filho — ou talvez o contrário. A prova chega em Florença pelo caminho perfeito, passando antes na Piazzale Michelangelo. É interessante que os portugueses chamem Michelangelo de Miguel-Ângelo, ou seja, ficam no meio do caminho, quando poderiam chamá-lo logo de Miguel Anjo. Em todo caso o lugar é um mirante projetado por ele mesmo, do lado sul do rio Arno e de onde se vê o rio, a Ponte Velha com suas lojas, as pontes novas, e toda a cidade. No fundo, morros que são a entrada para os Apeninos.

Hesitando em deixar para trás mais um lugar perfeito, desci rumo à cidade. São algumas curvas de nível e logo estamos na beira do Arno. Tendo vivido em Lucca, a pouco mais de uma hora de Florença, já estive nesse lugar algumas vezes, inclusive de bicicleta. É um privilégio a sensação de familiaridade com lugares muito distantes de onde nascemos. Voltar. Eu sentia essas coisas enquanto virava à esquerda rumo à Ponte Velha, il Ponte Vecchio. Algo que me fascina é como certos substantivos são masculinos em certas línguas e femininos em outras. Ponte em italiano é masculino. Fiore, flor em italiano é masculino, o que para mim é estranho e bonito. Aqui eu sabia o caminho de cor, pelo menos até a Catedral.

Aqui entramos no além-das-palavras.

Encontrei Ian e Francesco em frente à Catedral.

Dei uma volta em torno da Catedral, lenta e apreciativa, e saí meio perdido buscando o norte da cidade. Pensei nos planos de ficar ali perto, em Lucca, mais uma semana com a família depois do Italy Divide. Assim senti menos dor por sair de Florença.

Agora a próxima cidade grande no roteiro era Bologna. Das cidades grandes mesmo na prova, Bologna era a única que eu nunca tinha visitado. Mas antes, era necessário atravessar os Apeninos, os mesmos Apeninos que foram assunto de aviso do Giácomo minutos antes da largada: não atravessar à noite, vocês não são o Jay Petervary. Bom, pelo menos ainda era de manhã.

A subidaiada começou ainda dentro de Florença. A princípio passei por bairros chiques e arborizados até mesmo para os padrões toscanos. Lá pelas tantas o asfalto acabou e a subida inclinou um pouco. Em determinado momento o caminho virou uma trilha, e cada vez mais íngreme.

Comecei a passar por muita gente caminhando, em ambos os sentidos. Vários tinham hastes sofisticadas para trekking, como se fossem cajados futurísticos. Como o meu progresso naquela trilha era lento, as pessoas me perguntavam sobre a placa na minha bicicleta, e alguns sabiam da prova e tinham visto outros participantes passando antes de mim.

O que eu não sabia é que estava entrando em um caminho famoso, parte da via Francígena, chamado Via degli Dei. Caminho dos Deuses. O caminho era uma mistura de trilhas, gramados sem demarcação, grandes pedras. Em vários momentos não havia modo de pedalar, e empurrar a bike já era melhor do que carregar tudo nos ombros. O caminho era lindo, mas ia se configurando como um dos mais duros do percurso até então.

Depois de bastante tempo cheguei a um platô gramado, com algumas antenas destoando do visual divino. Já devia ser meio-dia. Alguns casais e famílias faziam piqueniques. Não fiquei muito tempo ali, já respeitando o que poderia estar à minha espera.

A descida foi pior que a subida. Agora era tudo muito técnico e enlameado, com alguns trechos planos também bastante encharcados. Pedalar no lamaçal era no mínimo pouco inteligente: a bicicleta ainda precisaria durar mais uns 600 quilômetros. Empurrar a bike nos trechos piores também ia entupir tudo com uma lama fina perfeita para destruir corrente, coroa e cassette. Terminei fazendo uma pesada musculação, carregando tudo nos ombros.

A cabeça foi ficando ruim. Nesses momentos, se você conhece o caminho, pode decidir melhor se descansa logo ou se força um pouco para chegar antes a um lugar mais tranquilo. Eu não conhecia o caminho e fui tocando. A certa altura entrei em uma descida muito séria, como raramente se encontra no Brasil: várias curvas de nível tangenciando uma montanha íngreme. Tudo na terra e lama, com pedras. Era espetacular, mas eu estava com o cérebro frito. A solução foi ir com bastante calma, sem forçar nada para não tomar um capote, e saber que alguma hora aquilo ia acabar.

Depois de muito tempo descendo, cheguei a um plano, e o caminho parecia se juntar a algo mais parecido com uma estradinha do que uma trilha. Pela primeira vez na prova, eu estava sem água. Em provas assim eu eu costumo andar com duas caramanholas de 900ml e mais uma ou duas garrafas de 500ml nos bolsos, mais para o caso de ficar a pé e precisar empurrar a bicicleta mais de 10km, algo que já aconteceu. Do meu lado esquerdo vi a primeira casa em muito tempo. Bati palmas para tentar chamar alguém. Depois de longos segundos, um homem mais ou menos da minha idade olhou através de um vidro, e saiu relutante. Pedi que ele enchesse minhas garrafas, pois vinha lá do alto. Ele apontou para a estrada e falou que 100 metros à esquerda tinha um bar, mas ainda assim entrou e me trouxe uma jarra de água.

Meu caminho era à direita, e segui por ali. Foi passando o tempo, eu não via nenhum comércio, e já passava muito da hora do almoço. Pelo mapa eu via que logo teria que encarar uma serra muito mais alta do que essa que tinha me tirado do eixo há pouco. Eu estava em um vale profundo. Vi que havia uma cidadezinha um pouco fora da rota, mas era melhor ir para lá e achar um restaurante logo. O problema é que todo vale tem um rio, mas nem todo rio tem ponte. Eu acabei em um mato, tentando achar um jeito de atravessar o caudaloso rio. No meio do mato, vi um senhor de pelo menos 85 anos de idade andando sozinho. Achei que estivesse alucinando, mas eu vinha dormindo bem, e a única substância entorpecente que eu consumira nas últimas horas era um pouco de Nutella, ainda assim a contragosto porque era o recheio de um croissant. Pedi alguma dica ao senhor sobre como atravessar aquele rio. Recebi a garantia que a algumas centenas de metros haveria uma ponte. Segui suas dicas e de fato havia uma ponte onde cabiam caminhões em duas mãos, e nada mais era do que o caminho oficial da prova.

Encontrei um restaurante bem convidativo, e agora já não me surpreendi mais ao ver 4 participantes da prova almoçando ali. Na verdade o restaurante era de um lado da estrada, e as mesas do outro lado da estrada, em um gramado com mesas cobertas. Não sei se algum dia vou deixar de me surpreender com a qualidade dos restaurantes que encontramos em lugares que parecem o fim do mundo na Itália.

Pedi um prato de massa ao molho de tomate, que por sinal estava delicioso, e fui ver quem eram os ciclistas. Esses eu não conhecia ainda. Eram 3 homens e uma moça. Um deles era italiano, dois eram canadenses e a moça, alemã. Cheguei ali mentalmente tão atordoado que, sem dúvida, os assustei. E pior, eles já estavam tão assustados com o que viveram desde Florença que 3 deles anunciaram que iriam abandonar o evento ali mesmo, e iam seguir pelo asfalto até a chegada. O italiano não estava pedalando com eles, e falou que ia seguir.

No restaurante em San Piero a Seve.

Segui viagem um pouco preocupado com o resto da Via degli Dei. Ainda em Florença recebi mais uma dica do Francesco e do Ian: se chegasse em Madonna dei Fornelli, antes de Bologna, já teria algum lugar bom para dormir. O objetivo do dia seria esse então.

Saí do vale de San Piero a Seve bem rápido, aproveitando o que havia de plano no dia. A tarde já estava avançada, deviam ser quase 4 horas. Eu via no ciclocomputador que tinha errado o caminho, mas não confiei muito porque alarmes falsos são comuns. Atravessei o portão do que parecia ser um hotel de luxo. Nem pensei muito, talvez fosse apenas mais uma passagem criativa entre tantas. Em 2 minutos cheguei na recepção do hotel, e dois homens saíram de lá bastante confusos. Aí a minha confusão começou. Eles me garantiram que prova nenhuma de bicicleta passava por aí, e que não tinham visto nenhum ciclista nos últimos dias. Acreditei e dei meia-volta.

Conferi meu mapa no computador e não entendia muito bem onde eu tinha que entrar. Decidi usar o mapa de reserva, que estava em um app no meu celular. Ele me apontou para um caminho paralelo. Indo para lá cruzei dois participantes do Leste Europeu em caminho oposto ao que eu ia. Falei com eles que vim de um hotel e que estava errado. Eles deram certeza que estava certo. Isso estava mais comum do que venho narrando, eu já tinha visto e cometido diversos pequenos erros de navegação, rapidamente corrigidos. Toquei no meu caminho e comecei a subida, logo na terra e pedra. Não vi mais nenhum ciclista e as casas começaram a rarear. Na última casa que vi, perguntei para um senhor se eu estava muito longe de Madonna dei Fornelli. Ele: não conheço. Eu: aqui pra frente é tranquilo? Ele: não. Agradeci e segui em frente chorando um pouco por dentro.

A tarde caía e aquele lugar era lindo. O dia inteiro eu atravessava caminhos demarcados com 2 pinceladas de tinta, uma branca e outra vermelha, demarcando a Via degli Dei. Eu observava também que não era um único caminho demarcado assim, e se fosse para a esquerda ou para a direita em um T, era tudo demarcado igual. O cartesianismo não pegou na Itália. Sendo assim, fui tocando e pelo mapa do celular estava tudo certo. Eu só não via uma marca de pneu de bicicleta sequer, o que era muito estranho. Via muitas pegadas, e de fato ia cruzando peregrinos a pé. Mais estranho ainda para um brasileiro, eu estava numa floresta longe de tudo e o sinal do 4G estava bombando. Resolvi recorrer aos amigos do Cascalho Carioca. Pelo celular pedi que eles olhassem com calma o mapa oficial da prova, conferissem o meu ponto, e me situassem se eu estava certo ou errado. Em minutos eles me informaram que eu estava na direção certa, porém fora da rota, ainda seguindo paralelo a ela. Me disseram também que a rota oficial era em uma estrada asfaltada. Enquanto isso, eu já começava a ter que jogar a bicicleta para cima das pedras e escalar os morros atrás delas, rendendo bastante choro e ranger de dentes, além dos belos visuais.

Depois de muito matutar, entendi o que aconteceu. Eu tinha copiado a rota manualmente no Brasil, literalmente redesenhado a rota. Eu conferi e reconferi, isso cerca de um mês antes do evento. Uma semana antes do evento, o Giácomo soltou outra versão da rota, segundo ele com uma alteração apenas. Era aquela: eu errei algo na rota nova que me levou ao hotel, e depois usei a minha primeira rota, que usava a passagem do ano anterior naquele pedaço. Tive que rir, além de chorar, ao me lembrar que o Giácomo disse que mudaria o trajeto ali porque era difícil demais. Realmente. Sorte que no Italy Divide eles não levam a rota a ferro e fogo(“Is not a race!”), porque voltar e refazer o que eu tinha feito diferente parecia até pior do que encarar um pouco mais o perrengue e voltar ao caminho novo mais à frente.

Pena que, pelo caminho antigo, ainda seriam várias horas até eu reencontrar o caminho atual. Mas isso eu não sabia ainda. Só sei que, na altitude, o Sol foi caindo e o frio bateu. Não havia construções por ali, era o lugar mais selvagem do evento até então. Passei por algumas pessoas acampando, cozinhando em seus fogareiros. Mas eu tinha água, tinha comida…então era só seguir em frente. Ao conversar com os peregrinos naquele ponto, eles já sabiam de Madonna dei Fornelli, apesar de nenhum deles acreditar que eu conseguiria chegar lá naquele dia.

Já com a noite escura, cheguei de novo na rota oficial. Ali era terra, era subida e era dureza igual ao que eu tinha passado. Ouvi vozes e vi faróis de bicicleta. Eram os quatro que encontrei no almoço. Eles me confirmaram que o asfalto tinha acabado há pouco, que vinham curtindo mas o caminho até Bologna teria que ser igual ao da prova. Nessa altura eu estava ainda mais pirado do que quando os conheci. Consciente desse fato e precisando de uma companhia humana para dar uma acalmada, literalmente pedi para ir pedalando com eles alguns quilômetros. Eles aceitaram e ainda vieram puxando papo comigo. Eu tentava concatenar respostas com alguma coerência. Me lembro que eles me contaram que não treinaram nada para o Italy Divide, e eu contei que treinei muito para o Italy Divide. Lá pelas tantas eles disseram que iam procurar um lugar mais discreto para armar os bivaques. Achei muito cedo mas não questionei muito, eles poderiam apenas estar dando um perdido no louco. Me despedi e toquei em frente.

Eram mais de dez da noite quando vi que estava chegando próximo a Madonna dei Fornelli. A aproximação da cidade foi muito legal, com gramados para atravessar, caminhos intrigantes. Até ajudou a levantar o astral, porque aquela tinha sido a Etapa Rainha da prova.

Cheguei em um restaurante-pousada quase fechando, para não perder o hábito. O proprietário me falou que estava tudo reservado, mas que uma das reservas ainda não tinha chegado. Jamais saberei se ele estava me assustando, os italianos adoram fazer isso. Só sei que no fim ele me deu um quarto. Eu ia dormir como uma pedra em Madonna dei Fornelli, a Nossa Senhora dos Forninhos.

Dia 7: Madonna dei Fornelli — Sommacampagna

Acordei ainda no escuro e desta vez saí antes do café da manhã. Eu não estava atrasado mas também não podia mais enrolar se quisesse completar a prova no dia seguinte.

Seriam alguns quilômetros de subida no cascalho e depois uns 30km de descida no asfalto até Bolonha. Encontrei os dois austríacos que dormiram no meu hotel na primeira noite. Eles continuavam animados e não falando inglês muito bem.

Um Sol muito vermelho nasceu à minha direita, prenunciando as cores de Bolonha.

Cheguei a Bolonha brocado de fome. As pessoas iam para a escola e para o trabalho. Ainda fazia frio e, a meu lado, sempre uma calçada coberta por uma marquise sustentada por arcos. Tudo era avermelhado. Siena é toda tijolos, uma paleta impossível de tantos tons atijolados. Bologna é assim com o cimento vermelho. Talvez supreenda alguns, mas fica muito bonito.

Parei no primeiro bar que encontrei, chamado Star’s Café. O dono, Luca, é triatleta e foi de enorme simpatia. Compreendendo o buraco no meu estômago, ele fez uma bandeja com seis croissants diferentes, além de um cappuccino gigante, e não quis me cobrar. Felizmente a esta altura da vida eu poderia pagar por aquilo, até mesmo em Euros, o que nem sempre foi o caso. Mas não deixa de ser um gesto bacana alguém te incentivar desta forma. Luca foi a única pessoa com quem interagi em Bologna e ele me fez gostar dali de imediato.

Atravessei Bologna com pressa mas ainda muito curioso. Aqui tinha vivido Umberto Eco. É a capital da Emilia Romagna, famosa por sua comida excelente. Suas construções são diferentes, não há nenhum traço de soberba de cidade linda como Rio, Roma, e ainda assim esta cidade é muito simpática. Como de costume, a rota do Italy Divide propiciou um tour pelos lugares bonitos da cidade. Destaque para a Piazza Maggiore, a Piazza Grande como os locais a chamam. Não é nem nunca vai ser uma Piazza Navona, mas tinha alguma coisa ali e o impacto foi tanto que voltamos com a família quase um mês depois, ficamos uma semana em Bologna, e foi inesquecível. A comida é de outro mundo realmente.

Desde meses antes da largada eu vinha me comunicando com o Samuel Maia, um ciclista brasileiro que também faz longa distância e gravel, entre outras coisas, e mora em Mantova. Eu curtia seus video-relatos no canal BicyclePure do YouTube e nós fomos trocando ideias com o intuito de nos encontrarmos quando eu passasse pela cidade dele. Mantova era outra cidade que eu nunca tinha visitado, e sinceramente não sabia praticamente nada a respeito. Foi com alguma surpresa que, ao contar para as pessoas qual seria meu roteiro, ouvi os primeiros comentários sobre a beleza de Mantova.

O caminho entre Bologna e Mantova trouxe um outro tipo de desafio: era basicamente uma linha reta, plana. Foram cento e muitos quilômetros, a maioria deles por uma larga ciclovia elevada de cascalho. Não era fácil acreditar na extensão daquele caminho. Por estar mais alto que o entorno, dava para ver enormes plantações e um horizonte sem fim. Mas, com o sono atrasado, o tempo demorou a passar. O dia anterior ainda pesava, mais na mente do que nas pernas. Por sorte não havia vento contra, e assim fui rendendo bem apesar da cabeça ainda em recuperação.

A alegria voltou quando cheguei perto de Mantova e o Samuel me encontrou. Foi uma recepção muito calorosa que ele me estendeu, com um largo sorriso, um abraço e ainda me conduzindo em direção à cidade dele.

Almoçamos na praça central de Mantova, que é de fato maravilhosa. O Samuel me introduziu ao Riso alla Pilota, prato tradicional Mantovano: uma espécie de risoto com carne de porco moída. Prato simples mas delicioso e perfeito para dar um combustível. O astral era de cidade pequena e o Samuel parecia conhecer muita gente. Eu acho os italianos em geral muito gente fina, em especial com quem como eu tenta falar a língua deles. Ali não foi diferente.

Depois seguimos para um rápido tour da cidade. O lago com o Palácio Ducal é uma visão única, ainda mais com o Sol caindo como estava. Ainda encontramos alguns amigos de bike do Samuel que, ao ouvir de onde eu vinha e para onde ia, me deram alguns sachês de gel de presente. Galera muito acolhedora, obrigado pelo carinho!

Para arrematar, o Samuel ainda fez por mim algo que eu até tentava fazer mas não conseguia: reservar uma pousada para aquela noite. Eu não tinha entendido como fazer ligações do meu chip brasileiro para a Itália. O Samuel descolou um pouso e fez a reserva para mim em segundos. Foi bom continuar o caminho já sabendo onde eu ia ficar, fui ainda mais relaxado.

Um abraço e um até a próxima ao Samuel, com muita gratidão. Agora era seguir em direção a Verona, já sabendo que mais uma vez eu ia dormir nas cercanias da cidade grande, o que é muito melhor. Eu queria muito entrar em Verona de novo, um lugar de sonho. Mas esse percurso antes de Verona foi melhor ainda, foi o próprio sonho acordado.

Eu filmei pouca coisa porque eu queria mesmo era ver tudo com meus olhos. E vi. Atravessei bosques, acompanhei a beira de um rio com casas construídas sobre cascatas, vi cisnes gigantescos, gramados, trilhas fechadas, cidades medievais e renascentistas com o clima que só o Vêneto tem, e para mim ainda é impossível explicar. A única parte da prova comparável com esta foi a Toscana.

Se eu comecei o dia ainda com a carga de uma véspera muito dura, eu chegava a Sommacampagna com a alma lavada. Não cheguei muito tarde, ainda fui recepcionado por um antigo campeão italiano de boxe e sua esposa, donos da acolhedora pousada em que pernoitei. No melhor quarto da viagem, com todas as roupas estendidas pelo chão, apaguei feliz da vida.

Dia 8: Sommacampagna—Torbole

Acordei às 4 da manhã. Elena, a dona da pousada, serenamente tinha me dito que estaria acordada e com um café da manhã pronto para mim às 4:30. Era um super café, como se todos os hóspedes da pousada fossem estar ali àquela hora.

Não procurei saber muito, mas pareceu que ela tem muita experiência em ajudar atletas — não que eu seja um, deixemos isso claro, e nem que minha titulação no meio esportivo traga algum benefício para mim, nem muito menos para o universo que agora estão dizendo ser muito mais velho ou rápido em gestar galáxias do que vínhamos acreditando. Primeiro, e agora volto para a dona da pousada, pela atitude serena e placidamente entusiástica ao saber da minha rota. Segundo, pelo apoio prático. Um exemplo: sabendo que eu atravessaria o Monte Baldo, ela me trouxe um resumo da previsão do tempo por lá, com sugestões de melhores horários para subir. Na verdade, eu falei com ela chamando o Monte Baldo de Monte Ubaldo, e só me dei conta do equívoco muito mais tarde, quase no pé da montanha.

Saí mais uma vez logo antes do Sol nascer. Se tudo desse certo, aquele seria o último nascer do Sol do meu Italy Divide. Admito que não foi tão belo quanto o que nasceu perto de Bolonha, mas foi muito bonito. Me lembro de uma longa descida no asfalto, depois uma casa aqui e ali, uma fábrica, um quarteirão, e um cinema.

Um cinema. Em quase 1300km, atravessando cidades grandes da Itália, aquele era o primeiro cinema que eu via. Ele era pequeno, simples. As letras C-I-N-E-M-A imitavam as fitas, os rolos de filme. Me ocorreu que minha avó Adriana chamava filmes de fita. Me lembrei de assistir Cinema Paradiso no cinema com o meu pai, eu com 14 anos, ele recém separado da minha mãe. Um dia tão triste, e ao mesmo tempo inesquecível. O amor dos meus pais acabando, e eu entrando na idade do romance, de amar. O final daquele filme, o final do cinema que hoje é mais um aplicativo, o final desta minha viagem, da minha juventude também. Eu já estava bem mais velho do que meu pai era naquele dia. Esse nó todo.

Fui chorando em frente. Ainda com os olhos marejados parei em um café, onde estava um ciclista da prova, o holandês Jaap. Nós tínhamos nos cruzado diversas vezes ao longo da prova, e tomado um café juntos aqui e ali. Ele era simpático mas muito discreto e silencioso. Balbuciei alguma coisa para ele, que pareceu entender meu estado.

Inacreditavelmente, eu tinha chegado em Verona de bicicleta. Doideira. Que cidade bonita, com um tamanho humano. Como disse nossa querida amiga Rafa: uma Roma em miniatura. Com certeza isso e muito mais também, afinal ali é o Vêneto, que a seu modo foi uma grande potência no passado, e tem uma cultura toda própria, com os olhos repuxados do Oriente.

Mesmo pensando no meu tempo curto, me permiti um giro pelos lugares mais bonitos do Centro, a Piazza delle Erbe, a casa da Julieta, a via Mazzini. Outro lugar pra se jogar a bicicleta no chão e morar pra sempre.

Toquei em frente. A partir dali a prova sobe de verdade, com os dois topos mais altos de toda a viagem. A manhã toda foi de subida, atravessando um castelo e depois no cascalho. Quando dei por mim estava viajando em morros gramados, nem estrada tinha mais, marcação, nada. Era só seguir a linha no mapa.

Fui atravessando vilarejos até chegar em uma cidadezinha: Cerro Veronese. Já eram umas 11 da manhã e a fome estava grande. Parei em um restaurante que estava começando a abrir. O dono, que deveria ter a minha idade, me recebeu com cortesia. Perguntei o nome dele: Filippo. Eu disse: o nome do meu filho. Ele: seu filho se chama Felipe, como no Brasil? Eu: ele se chama Filippo, como na Itália. Mesmo nada estando preparado para servir alguém, ele improvisou uma salada ótima e se recusou a receber pagamento. Um dia a gente volta lá e paga em dobro.

Ainda tinha subida, tanto que comecei a ver estações de esqui, com teleféricos já vazios depois do fim da temporada. Em anos passados, a prova ali incluiu neve. Eu tinha medo disso e tentei ir preparado, com muita roupa, meia e luvas apropriadas. Mas a pouca neve que vi era apenas o último resto do inverno. Pedalei por muito cascalho lá no topo do que, mais tarde, aprendi que se chama Lessinia.

Quase no topo dessa primeira grande subida do dia, fui ultrapassado pelo Francesco e pelo Ian. Tinha uns 2 ou 3 dias que eu não os encontrava, mas sabia que eles estavam perto quando conferia o mapa da prova. Eles acordavam mais tarde que eu e pedalavam mais rápido. Assim, eles me passaram mais uma vez. Alguns segundos depois de ser ultrapassado, algo estranho no meu pedal esquerdo: parecia que ele estava indo para a esquerda. Mais algumas pedaladas e o pedal estava solto da bike, preso no pedivela e na minha sapatilha. Gritei pelo Francesco e Ian, quem sabe eles saberiam me ajudar melhor. No mascar do cascalho, eles já não me ouviram.

Saí da bike atrapalhado com o pedal preso em mim. Tirei a sapatilha do pé, e só assim tirei a sapatilha do pedal. Agora teria que consertar aquele pedivela solto. Eu estava calmo, apesar daquilo nunca ter acontecido comigo antes. Encaixei o pedivela e apertei os parafusos. Eu sentia que faltava alguma coisa, o encaixe não era perfeito, mas parecia que dava pra seguir daquele jeito. Torci para dar certo, subi na bike e toquei marcha.

Passo da Alta Lessinia

A descida da Lessínia foi um mergulho. Entre terra e asfalto, perdemos 1500m de altitude em uns 15km. A única rampa assim no Brasil é a Paraty-Cunha, que eu só fiz subindo. Chega a cansar, porque exige concentração. Ao final eu já estava em outra região da Itália: o Trento.

Comi alguma coisa em Sabbionara, no vale que separa as duas subidas do último dia. Não vi charme ali, e já não estavam servindo refeições naquele meio de tarde. O tempo estava nublado, ainda que não estivesse frio.

Preocupado em não estar no topo do Monte Baldo à noite, não enrolei. Subi na bike e entrei na cidade de Avio, essa mais charmosa. O Trento já se parece um pouco com a Áustria, mesmo ali na ponta sul da região. Avio era uma subida. Olhei por cima dos telhados da cidade e fiquei com medo: as montanhas eram gigantescas. Pareciam uma parede intransponível. Tinha que ter um jeito e era simples: seguir o mapa e encarar. Fui com medo mesmo, e a estrada achava um caminho sem grande inclinação, uma fenda na serra. E assim foi sendo, no asfalto, uma subida muito longa cuja única comparação na minha experiência é a subida para Itatiaia. Alguma corrida recente passou por ali: vi os nomes dos grandes ciclistas pichados no chão. Era lindo mas agora eu tinha pressa. Tanta pressa que meu pedivela saiu de novo. Não tive adrenalina para nada: apertei os parafusos e seja o que Deus quiser. Só na oficina no Brasil me ensinaram que uma pequena lingueta de plástico tinha sido esmigalhada com o tempo, ela dava a trava certa no pedivela, e eu rodei muito tempo ao sabor da sorte.

As Dolomitas impõem respeito.

Depois de horas nessa subida, agora pensando mais em não passar frio do que em aproveitar a grande montanha, cheguei no “Passo”: o topo. Um longo platô estica aquela altitude por vários quilômetros, aquilo era coisa de filme, com pastos para todos os lados. O Sol já estava baixinho, e agora quem ia descer era eu. Primeiro por uma beira de despenhadeiro bem perigosa, ainda que bonita. Depois voltando ao asfalto, por uma estrada larga e perfeita. Ali eu andei rápido e passei um pouco de frio.

O passeio estava acabando. Depois de longas horas atravessando o Monte Baldo, eu estava mais próximo do Lago de Garda, a linha de chegada do Italy Divide. Já era noite e começou a chover fino. Um misto de alegria, medo de algo dar errado bem no fim, e aquele vazio no peito de expedição concluída. Ainda tinha uns 20km pela frente, por cidadezinhas, plantações, ciclovias, descendo e descendo gradualmente. Só esse final de prova era um pedal e tanto, seria inesquecível se fosse só aquilo.

Já eram quase 22h quando cheguei a Torbole. Cabeça e corpo cansados, me perdi um pouco na cidade. Eu via que a chegada estava perto, mas não encontrava nada sinalizando a prova. Dei voltas em uma rotatória cheia de bares abertos naquele sábado. Confesso que, nessa confusão, aquela euforia de uma chegada triunfal, que eu sabia que não aconteceria, se esvaiu de vez. Depois de mais alguns instantes, entendi onde devia entrar, e cheguei.

7 dias e 10 horas depois, fim de passeio.

Epílogo

Alguns segundos depois de eu entrar no espaço dos Finishers, fui recebido pelo Schizzo (“Esguicho”) com enorme carinho. Segundo ele, eu fui a primeira pessoa a vir do Brasil para o evento em todos os anos. Ele tirou muitas fotos minhas, me disse que eu podia pegar quantas camisetas de finisher quisesse, e me deu dois pares de meias.

O primeiro participante a concluir o evento, Jochen Böhringer da Alemanha, chegou em 3 dias e 20 horas.

Cheguei com poucas horas de diferença do Massimo, Alex, Francesco, Ian, Japp e dos austríacos do primeiro hotel.

Meu vizinho de quarto em Pompeia, Marin, estava entre os 3 primeiros até o quilômetro 800 aproximadamente, quando abandonou. Eu não sei o motivo até hoje. Depois ele chegou em quarto lugar na Transcontinental Race, e venceu a Atlas Mountain Race ainda em 2022.

Azubuike ficou em Siena.

A Via degli Dei foi inteira retirada da prova em 2023.

Gary Johnson e Nelson Carter, salvo engano, concluíram o percurso depois de algumas semanas.

A dupla pai e filho Tom e Oliver concluiu a prova.

O inglês Webster concluiu a prova.

O trio canadense-alemão-italiano que encontrei no vale da Via degli Dei chegou a Torbole, aparentemente por um caminho de asfalto, e é marcado como finisher na tabela do evento.

Encontrei o criador da prova, Giacomo, no dia seguinte e dei um grande abraço nele.

Voltei a Roma, encontrei minha família e viajamos mais um mês pela Itália, um privilégio inesquecível.

Penso em fazer o French Divide em 2024. São 2275 quilômetros com mais de 32000 metros de altimetria.

Italy Divide 2022 — Antes

25 de janeiro de 2022

No final do post sobre o Bikingman 2022 eu escrevo um pouco sobre minha decisão de participar do Italy Divide. Aqui vou fazer anotações esporádicas sobre minha preparação.

Em dezembro comecei a ser treinado pelo Nuno Lopes. Ele tem uma bela vivência no ciclismo de longa distância, completou a Trans Am e é conselheiro do Randonneurs Brasil. Mal arranhamos a superfície, mas gosto muito dele, me divirto e ele entende do assunto.

Fiz uma primeira consulta com o Rafael Brasilia, conhecido nutricionista de ciclismo. Desde então perdi uns 2 ou 3 kgs, dos 84 passei pra 82 ou 81 (cheguei a pesar 80.0 na balança logo após um pedal…sei que não vale mas foi marcante). Tenho me alimentado de maneira bem diferente do habitual. Não é fácil mas o resultado aparece aos poucos, e a construção de novos comportamentos leva bem mais de 2 meses.

Estou trocando de bicicleta. Minha gravel atual, uma Topstone de carbono, não comporta pneus mais largos que 38, talvez 40mm em rodas 700C. Na Topstone eu venho usando uma roda 650b, e assim pneus 48mm, mas pneus para rodas 650 são impossíveis de encontrar em lojas. Depois do rasgo no pneu durante o Bikingman, optei por essa troca (e é claro que nunca mais vou ter esse problema com o pneu).

Comprei alguns equipamentos para o Italy Divide, e outros estão a caminho. A melhor compra até agora: um farol Ravemen 1600 lumens. Fiz um brevet de 1000km que pensei como preparação. E que preparação: choveu o tempo todo, as estradas ficaram bem perigosas no final, perto de Mariana e Ouro Preto. Fiz 950km e abandonei, com as solas dos pés bastante machucadas pela água e pensando na minha segurança naquela estrada.

Meu objetivo para o Italy Divide é completar dentro do tempo, aproveitando ao máximo o trajeto que promete ser muito difícil. Até agora eu não sei qual o tempo máximo permitido para se completar o Italy Divide. O site e o manual da prova parecem bastante vagos a respeito, mas já vi relatos falando em 7 dias. 1250km com 22000m de altimetria em 7 dias parecem factíveis, mesmo sabendo que o terreno vai ser bem desafiador.

Links

https://off.road.cc/content/feature/conquering-the-1300km-italy-divide-8527

My Year at: Work

The last episode in our adventures ended with me as a Team Lead at Circuit, and me calling this article “My Year in: Tech”.

From now on I will use a more encompassing “Work”. 2021 was a year of important steps towards a goal I’ve held for a few years now: to become a full-time investor in the general style of a Warren Buffett and a Ben Graham.

I started the year helping spawn a new team at Circuit, the first official team there. We were happy to welcome two engineers, Christian Kaisermann and Vitor Paladini, who truly hit the ground running. They had worked together before, and their rapport made things move from the beginning.

Around April a friend whom I admire very much, Bruno Bergher, told me about Metabase, a company he had recently joined as VP of Product. Metabase does BI and data visualization. The product seemed quite nice, the company had a good online reputation, and I could imagine that the domain was interesting. Most of all, Bruno is really one of the smartest people I’ve had the luck to meet.

Bruno asked me if I’d consider a position at Metabase. I was satisfied at Circuit: the people were really nice, the work flowed well and the company was soaring, having grown revenue 3 times last year while almost entirely bootstrapped. There were two issues for me: working with Firebase, something I touched every day, was not enjoyable, and judging by the company setup, getting a pay raise would not be trivial. I brought up both subjects, Firebase multiple times, and salary a couple of times. The outcomes of those conversations were understandable from Circuit’s point of view, but didn’t point towards a great convergence with what I preferred.

It seems to happen repeatedly in tech, at least in our long-standing economic cycle, that companies focus on recruiting but not on retaining. Although this did not happen so literally at Circuit, we often see professionals start jobs at much higher salaries than great people who had joined a company months or years before. The churn seems suboptimal from a long term perspective, for everyone involved. As it happens, from the perspective of an employee, joining a different company means you will earn much more than staying put.

Long story short, in May I joined Metabase. Again I went from leading to being an engineer.

In parallel, and I had being working on this for over a year, I kept studying for the Brazilian equivalent of the CFA. Here we call it CGA. Mid-year, I passed. This certification opens the legal doors for me to manage investment portfolios, funds and so on. Investing is something I started reading about in 2007 or 2008, and it became a serious pursuit for me. To illustrate, I have a YouTube channel where I study companies in public, and I’ve done over 730 episodes of it. I started a very informal investment partnership in 2017 that has been beating the most important Brazilian stock index since inception. It’s something that I’ve frankly been enjoying much more than software. It may be because I only have an hour or so a day to dedicate to it. The fact is, it’s going well and I love to work on a much, much wider canvas than the one I see in software.

The experience at Metabase has felt peculiar and is still hard to describe, even after 8 months. It’s a very loose organization that has grown its headcount a lot recently. I don’t get to work with Bruno directly. The codebase and processes have been a challenge for me, and I’ve worked on a few challenging codebases and processes. It feels like I still haven’t understood the company enough to be able to describe it. I am thankful to be there, but must admit I miss working with a bit more structure, and I certainly miss the more frequent human interactions and strategic work of leadership and management.

I have one very clear goal for 2022: to start a formal investment partnership. It will take the shape of an investment “Club,” a legal vehicle in Brazil that is suitable for investment funds that are still not large, between 1 and 15 million reais. I will be able to, indeed must work on it only part-time —as a shareholder in the fund, by law I can’t be paid to manage the portfolio. This will be a very important step in growing a currently informal partnership that has beaten the Brazilian stock index by 61.38% over the last 5 years into a true investment fund a few years from now. If you are reading this and would like to know more about investing with the partnership please write me at gustavo@poe.ma.

My Year in: Tech

I started out 2020 taking my first relatively prolonged vacations of the last 15 years or so: 3 weeks. Coming out of the first year of my twin children, the break was welcome.

To recap, I was working at Toptal’s core and had just finished recruiting a new team, having hired 3 new front-end engineers. I put myself in contention for a promotion to Engineering Manager. At Toptal this was a rarefied position. The company was about 600 or 700 people and only 4 EMs existed. They were opening 4 new spots. I was looking for a step forward, not necessarily associated with a title.

Almost parallel to that, a former colleague tweeted that his company, Circuit, was looking for people. I really love this guy, Filipe Alvarenga, so any company he’s working for must have virtues. I met Jack Underwood, one of Circuit’s founders and its CEO. I felt good about him and the company. It helped that Jack publishes monthly letters to the public about how the company is doing, and they seemed very candid.

Circuit provides technological infrastructure for last-mile deliveries. Think managing your daily routes if you are an individual driver, and also doing that in a team of dozens of drivers.

I was hired at the Team Lead level, same as I had been at Toptal. The idea was to expand the front-end headcount at Circuit and create a React team. When I joined, in the second half of March, the world had just been turned upside down by Covid. All plans at the company changed very quickly: despite the immense negatives of the pandemic, Circuit was in a position to help things and grow significantly, as deliveries exploded everywhere.

I operated as an engineer for the rest of the year. In my first 2 or 3 weeks I wrote an application where recipients of deliveries could track their shipments. It was relatively simple, and got shipped quite smoothly. That was the first application written in React at Circuit.

The company’s focus had shifted to really serving teams of drivers. It’s a natural progression from individual drivers, to teams, and eventually to enterprise.

Our back-end uses Firestore, a serverless product from Google, and there was work to do there after completing the recipient application. I shipped or helped ship several of these cloud functions, both for external and internal use. What was missing in our backend were tests. A colleague had just started writing unit tests in the repo. I spent weeks of off-time trying to learn how to properly test back-end functions in Firestore. The documentation is not helpful and I could not find good materials. So I pieced out the knowledge, tried things, and eventually got one version to work, then we all improved on it. I think this was our main achievement of the year, technically. Soon the tests spread out in the app, all colleagues were writing tests, and I believe we got a much more productive rest of the year with the benefits of serious test coverage.

After some work converting our internal admin panel to React, we took on the rewrite of SpeedyRoute.com, also in React. SpeedyRoute is an acquisition made by Circuit some time ago, originally written in CoffeeScript. We completely rewrote it in React, and now the UI looks a bit more contemporary too. Around then the decision was made to convert all our web applications to React, and to start the new ones in React as well, phasing out Ember.js.

At this point, we were in the last quarter of 2020 and we were ready to go back to the original plan for my joining Circuit. Jack invited me to lead the recruiting of 4 front-end engineers. It was great to be back doing interpersonal-focused work. The internal recommendations of engineers were very strong and this helped the process move quite quickly. We now have 3 hires and may close out the 4th soon.

The newcomers will start in the first few weeks of January, and we will spawn a team to rewrite our most important web client, Circuit for Teams.

The year was challenging, of course, but at work it did not feel proportional to a global pandemic. The culture at Circuit is driven but very balanced, the founders are sensible, very intelligent, and rational. They are always present, designing and coding along, so it feels they get a much more realistic sense of how things are progressing than if they were only doing management. And because they are working with everyone, it is just natural that we can talk frequently and issues get resolved quickly.

The company more than tripled its annual recurring revenue from US$3M to just over US$10M this year. There were next to no major bugs or incidents, and a lot got done during the year. Interactions with everyone were unfailingly pleasant and constructive.

I was the 8th person in the company when I joined, we are now 12 and, with the new team, will be at least 16 in the first quarter of 2021. It will be fun to help grow the company, help keep the good things that can be kept of the current structure, and also help add good things for it to scale nicely. We have reasons to be optimistic that Circuit will accomplish this.

TDD with Firestore functions emulator

Having spent time running tests inside and outside Firestore’s emulator, I learned that using the emulator is more than 50% faster.

Here is the latest flow we are using at Circuit. If you know of a simpler way, please let me know at gus [at] getcircuit [dot] com.

Basic version

firebase emulators:exec --only firestore 'jest'

You can replace jest with the runner of your choice.

Abstract the emulator call

Install scripty:

yarn add scripty

Add an entry to package.json:

{
  …
  "scripts": {
    …
    "test": "scripty"
  }
  …
}

Create a directory called scripts in the root of your project.

Create a file with path and name scripts/test:

#!/usr/bin/env sh

str="$*"
firebase emulators:exec --only firestore "yarn jest $str"

Allow computer to run this file:

chmod 644 scripts/test

Now you can run yarn test and add anything you would add to the command, like yarn test --watch, yarn test /path/to/test.file.

Enable connecting with a browser’s debugger

Add an entry to package.json:

{
  …
  "scripts": {
    …
    "debug": "scripty"
  }
  …
}

Create a file with path and name script/debug:

#!/usr/bin/env sh

str="$*"
firebase emulators:exec --only firestore "node --inspect node_modules/.bin/jest --watch --runInBand $str"

Allow computer to run this file:

chmod 644 scripts/debug

Add debugger to any line of your Firestore code.

Run yarn debug — you can also pass a filename to focus on it right away.

Open your browers’s developer tools.

Click on the green cube (Node’s logo):

This will open the debugger and you’re ready to step debug your code.

Simple tips for applying for a new development job

For several years, recruiting has been a part of my job in software. A few times I’ve been on the other side, looking for a job myself.

There are many low-hanging-fruit-type tips that can really make a difference when we look for a job. By making mistakes myself, seeing them made while recruiting, and by talking to colleagues, it’s now possible for me to list a few. Some may seem obvious to you — if you haven’t yet recruited, you’re in for a surprise over how common they are, and how much they affect the chances of someone getting a great job.

Learn about the company first

Before starting your application, spend no less than an hour attentively studying the company. Go to YouTube, try to watch videos involving top leadership. Read articles and learn about the people there.

Apply only to companies you care about

If you are in full application mode, apply to no more than 3 companies per day. Ideally 1 company.

If the company’s purpose doesn’t resonate with you, recognize the fact and move on.

Look at companies’ careers pages

Several companies, often the best ones, don’t advertise open jobs. They have their own careers pages and, relying on their reputations, will wait for applications.

For people who like to work remotely, Remotive’s company list has been helpful to a few people I know: https://remotive.io/remote-companies.

Don’t wait to apply

Once you’ve learned about a company and feel enthusiastic about it, apply immediately. In the global development market, good companies receive hundreds of applications on the first day or two after they post a job.

Apply to many jobs

While not applying to just any open job, do apply to as many of them as you truly like. Statistically, odds are low that you will be called for one given opportunity.

Start early

If I am suggesting you do not apply to too many positions each day, but to apply to many positions, by consequence I am suggesting you start early in your job search. Maybe practicing going through recruiting processes even before you need or want to do it can be ideal.

No spelling or grammar errors

Make it perfect in the language the company operates in. Pay someone, or a service, if needed. Great companies will quickly screen out applications that have language mistakes. By writing minimally well, expect to go to the top 10% of all applications.

Add a Github link to your CV

This is a huge differential. Prefer Gitlab or Bitbucket? Great, use your favorite. Don’t have public repos? Add repos of things you study, it’s perfectly fine. Make sure you add very good READMEs enabling visitors to run and test your repos.

Nothing like relationships

All the above may not be necessary if you have good relationships with former colleagues. You may be sought out before you need to look for a job. For this to happen, it is not enough to be very proficient at the technical part, people have to like spending time with you.

Git basics while typing less

Very short git commands

As computer programmers evolve in their craft, they increasingly identify repetitive tasks at all levels. One of the most basic levels is typing on the keyboard. Some programmers choose to invest effort and minimize typing. I am one of those people.

Git commands are among the ones I use the most, as listed in decreasing order with the number of times for each:

1241 gc
637 gco
583 v
419 git
373 cd
368 rm
316 mv
302 yarn
299 gb
247 gto
215 ga
213 c
191 gst
160
136 bundle
124 ©
115 mkdir
114 cp
106 npm
106 gt

If you’d like to see yours, you can run the following on the terminal: history | awk 'BEGIN {FS="[ \t]+|\|"} {print $3}' | sort | uniq -c | sort -nr | head -n 20

Please note that the number 20 at the end is the number of results to retrieve.

Back to my own history, you can see that:

  1. I use a lot of aliases
  2. Most of them are git-related, and that’s why they start with a g; gc is git commit, gco is git checkout and so on.

Recently I have taken this to the extreme, and so far the results have been excellent. Below are the commands I am able to run:

c (git commit or git commit -m, depending on the args passed)

p (git push)

a. (git add .)

b (git checkout -b)

The c function works for the following cases:

  1. c (will open the text editor for a long commit message)
  2. c “Your commit message” (acts as an alias for git commit -m
  3. c Your commit message (the one I love as you just type c plus the message, and it works)

While p and a. are calls with no args, with b you must simply add a branch name.

These are extremely simple improvements to the flow, and together with many others that I created or that I use from libraries, they make the path from brain to computer shorter and more pleasant.

To see how these are implemented, please visit this gist: https://gist.github.com/gusaiani/70736c970c2b2d4020006eb7dd31bc40

The commands in the gist which are not defined in this file come from oh-my-zsh plugins.

My Year in: Tech

I started the year of 2019 as a front-end developer at Toptal’s core team. Just a few days later, I was invited to be Team Lead for a brand new team.

My emphasis turned, again, to working with people. That was a delight and I fully embraced the opportunity to help build a team. We had a few company veterans enlisted to start the new team, all of whom I had not worked with before, and we needed to hire two more front-end engineers.

The first recruitment process was for an excellent React engineer. It was done very deliberately and unhurriedly, to make sure we raised the overall level of the team on the React stack. It took us a little over 2 months until we found a great guy, who has contributed a lot this year.

The second engineer was a gift to us, as he was initially hired for another team. Happy to say he’s also doing tremendously well.

We quickly became a real team. It seems we did a few things that helped: communicating a lot, admitting mistakes and ignorance openly and quickly, and being real human beings.

One teammate brought along the Personal Questions call from his previous team. This call has a simple structure: one team member asks one or two questions, personal as the name says, to everyone on the team.

The questions are as simple as “What was the best trip you ever took?”, or “What is your favorite dish?”. It’s up to the team to let this call become just a little window on who they are, or a huge gateway to people’s souls. Yes, it’s possible to cry while listening to someone tell you about their favorite food once they tell you the story behind it. The bond I felt with the team was immense.

Dedicating at least one or two hours per week of each team member’s time to building rapport makes a big difference, particularly in new teams. Next year I will work to learn more ways of doing that.

I made my share of mistakes. The one that comes strongest to mind is about having patience before giving feedback to people you may like personally but don’t think are doing a good job — especially when they are not reporting to you. Convincing people to change is hard enough as it is, doing it without mutual trust and knowing their motivations is likely to backfire.

Another lesson I was reminded of by a mistake of mine is the “no surprises rule”. It’s often hard to know, in advance, how sensitive some task or decision may turn out to be. Next time something I do starts to deviate too much from what was agreed-upon, I should remember to share that early on, and avoid surprises, because the surprise itself may make people react negatively to something fundamentally desirable, or I may have the wrong assumptions or decisions and other points of view will help me see that.

I stayed with the team for a total of 9 months, we launched a good chunk of the new application we were developing, and then I was enlisted to start a new team from scratch: to recruit every single engineer, and help recruit designer and product manager.

It was painful to say goodbye to a team I loved so much.

Soon it was back to recruiting, this time a few weeks of full-time effort, and we are still at it. We seem to be close to hiring two people, and have one more front-end and one more QA person to bring onboard on the engineering side.

This recent team switch gave me time to study programming after a several-month hiatus. I am focusing on new React APIs, from Hooks to Context and Suspense, as well as testing, TypeScript and, soon, Apollo.

I did continue to study the Elixir language source, something I’ve done for maybe 3 years now. This year I did relatively little of it. I love Elixir just as much as always, and am thankful for having learned so much from its community.

I plan to go multi-team as soon as I have a chance, be it in an Engineering Manager or CTO role. Thus I dedicated more time than ever to reading about leadership, management and communication, often with a big emphasis on tech. Especially for people who are new to management, I recommend The Making of a Manager by Julie Zhou.

A personal take on interviewing programmers

A few months ago some members of the team I lead at Toptal’s core team started interviewing programmers.

The fundamental questions that popped up were simple and deep: What should I look for in the interviewee? How do I know I should pass or fail the person?

I really like the priorities my own former supervisor, Timo Roessner, advocates: to look for—in decreasing order of importance—a team player, a good communicator, and a technically excellent person.

The person should ideally be very good at all 3 requisites. The main point, however, is deemphasizing technical wizardry in favor of interpersonal skills.

How to assess team-playing chops in a 90-minute interview with a coding challenge

Team-playing chops and communication chops seem intermingled, and in fact I believe one potentializes the other, but they can be assessed quite separately in software engineers.

As you facilitate a coding challenge or nearly pair-program with the interviewee, try to make it as close to the interviewee’s normal workflow as you can. Don’t use CodePens, have the interviewee use the editor or IDE of her preference. Apart from the technical things you need to evaluate her on, encourage her to use her favorite tools and procedures.

What you need to evaluate the candidate on is up to the needs of your company or team, but in general I prefer to give the candidate a wide-open small project instead of some algorithmic or procedural task. The reason is you will get a chance to role-play being the customer or Product Manager, and you can talk to the interviewee as such and see if she is able to conduct a dialog like this.

Calibrate, as you go along and get a sense of the candidate, how high-level or low-level it’s better to be. That is, is this person more concerned about the coding nitty-gritty or about what the entire project should do? Both are fine and necessary programmer inclinations, but the quicker you spot the candidate’s preferences, the quicker you can develop a rapport.

As the coding challenge starts, pay attention to the questions and shared thoughts. It should be clear to you, given some experience, if the candidate has mileage or a willingness to openly express thoughts. If they don’t say anything at all, probably this person will behave the same way at work.

Avoid, or delay, “helping” the candidate. Generally, in a coding challenge lasting 1 hour, I may interfere 1 to 3 times. But when you do, try to make it very meaningful and make it so that the proposed change of course really takes things in a different direction.

For example you propose the programmer develop a simple game. She starts by crafting the algorithm that will define if the game is over. As the interview goes past half its allotted time, and if the candidate has shown a good direction regarding the solution, propose she create the UI (if she is a frontend developer), or suggest creating a way to store a leaderboard (if she is a backend developer).

The way the candidate reacts to such proposals can be telling of a team player.

Also, very often candidates will do or say things that you don’t know anything about. Tell them you don’t know anything about that and see how they react. Do they explain it to you? Are they surprised? Do they convey a sense that they respect you less for that? But don’t pretend you don’t know something you know—you don’t need any trickery to interview people well.

How to assess communication chops

Assessing communication skills is a bit easier than assessing team-player inclinations. Start with the basics: can you even understand what the interviewee is saying? Often that is not the case. If and when you don’t, tell them that in a gentle way. This happens particularly often in international interviewing when spoken languages are not native to you or the candidate.

The opposite can happen: the candidate does not understand you. You should, of course, try your best to communicate clearly, and if the candidate still has a hard time getting what you are saying or asking, notice if they have the energy to ask you to clarify. If so, that is a good sign.

Being able to listen deeply is what differentiates an ok communicator from a good or great one. Does the candidate flow from what you are saying? In other words, can you notice them using and reshaping pieces of your discourse? Repeating things back to you transformed? Those are good signs. If they just respond things that seem unrelated to what you have been saying, then clearly this is a minus. More often things fall around the middle, and with time you will develop a feel for how good the candidate seems to be, plus the courage to use your intuition when the decision is not clear-cut.

How to assess programming chops

This is the easiest part if you yourself are a programmer, but it’s still challenging sometimes. Granted, it’s easy to reach a conclusion in extreme cases: if the candidate did really poorly or just brilliantly in the coding part.

When things fall more in the middle, which is by far the most typical, your skill can make a huge difference in the decision to say Yes or No to a candidate.

I always like it when a candidate writes, in human language, something like a list of things that need to happen in the program. For example, if the proposed task is to build a search user interface: to jot down that the screen has an input and a submit button, the user will type a string in that input, then press the submit button, and so on. This helps the candidate “think like a computer”, it allows her to expose her thought process to the interviewer and, if her assumptions are off-base, to know early. The worst that can happen is to end up with a little algorithm of what to code.

TDD, or anything similar to that, is a huge positive differential. It is a kind of planning ahead.

I must say it’s very rare that anyone uses TDD in interviews I run, and I’ve run a few hundred of them at the very least. It has never ever happened that a candidate wrote down point by point what should happen in the application.

Finally, good code architecture early on is one of the strongest signs that the candidate is good. If they refactor continuously, improve variable names often, and order things in their codebase without losing their train of thought, you are looking at a hire. And that’s why giving people much harder tasks than they will face in their work is typically not a good idea: you need to see how they can make code understandable to fellow programmers.

So if they start one file and fill it up with disorganized, commented out code and huge blocks of attempts, unless you asked them to do something too hard, in general consider this as a potential flag. But don’t get stuck to this: it’s not uncommon for great developers to seem quite sloppy the first 15 minutes in, and 10 minutes before the hour, to start deleting code and apply a final layer of improvements that leaves the code looking quite wonderful.

If you give the candidate a project that is larger than the hour you have to interview, something I support you do—as long as you set the right expectations, otherwise you will have a frozen person in front of you—, and you enabled the candidate to own the code in her machine, the bonus point is them continuing the project on their own. Until recently I sometimes suggested they do it. Nowadays I don’t even suggest that. If they have a way to reach me, they can do it if they want. I certainly take it as the strongest sign of interest in the part of the candidate if, hours or even a couple of days later, they get in touch with the completed project.

Participating in Daily Standups



Purpose of Daily Standups


You should leave a daily standup:

  1. More energized than you entered it.
  2. Aligned to be in contact after the daily with anyone if your or their main task needs discussion.
  3. Remembering everyone’s update.

Things outside of Daily Standups that can ruin Daily Standups

  1. If team communicates 1-to-1 a lot and not on shared channels.
  2. If people are tackling too many things at the same time.
  3. All basic management deficiencies.

How to prepare for a Daily Standup

Half an hour before the Daily Standup, stop for 5 minutes and:

  1. Decide what is the one initiative you will mention.
  2. Write it down in your own words.
  3. Edit that down to 280 characters.
  4. Include expected time to finish task at the end.
  5. Say it aloud.
  6. Improve the wording or delivery until you have a clear and memorable update.

How to decide what to mention in a Daily Standup

By decreasing order:

  1. Task you are doing that is most problematic.
  2. Task you are doing that you know someone can help you with.
  3. Task that is going well.

How to listen well in Daily Standups

  1. Keep a log of Daily Standups and make notes of every update.
  2. Come back to that log half an hour after the daily and read it again.

Trusting the Scrum Master in Daily Standups

If each team member delivers their update clearly, nicely and concisely, the Scrum Master will have time to:

  1. Ask about important items that were not selected by the team.
  2. Raise questions.
  3. Ask about extraordinary additions to people’s update.
  4. Align people for pairing on issues raised.
  5. Use the extra time for having a bit of fun and enjoying the team before it gets back to work.