o retorno da nossa parceria em 2023 foi de 50,59%, já descontadas todas as despesas. A cota encerrou o ano a R$1,593018.
Nossa parceria superou em 28,31 pontos percentuais o índice Bovespa, que rendeu 22,28% no ano.
Ano
Nossa Parceria
Ibovespa
2017
29,44%
26,86%
2018
11,51%
15,03%
2019
59,25%
31,58%
2020
–9,23%
2,92%
2021
5,21%
–11,92%
2022
8,95%
4,69%
2023
50,59%
22,28%
Acumulado
260,16%
122,82%
Em 2023 fizemos poucas mudanças significativas na nossa carteira. Saímos da ótima Mahle Metal Leve, que parecia ter atingido um preço justo, e com isso montamos uma posição na Vale. Hoje a Vale é a maior posição da parceria, com 15% do nosso patrimônio. Montamos também uma pequena posição na Enauta Participações, uma empresa de óleo e gás. A cotação dela subiu muito rápido, e deixei escapar a oportunidade de montar uma posição maior a um preço atrativo.
De resto, com os proventos e novos aportes fui acrescendo investimentos às empresas de que já éramos sócios. O destaque em termos de cotação foi a C&A, que mais do que triplicou desde 2022.
Todo ano reitero nosso objetivo como parceria, que é superar o índice Bovespa ao longo de décadas. Não temos uma década de operação ainda, mas até agora estamos conseguindo: nosso acumulado desde 2017 é de 260,16% de ganho, versus 122,82% do Ibovespa. Na carta do ano passado escrevi também sobre um objetivo implícito da parceria: superar a taxa base de juros do Brasil. Este ano nós conseguimos com larga margem.
A taxa base de juros de um país tem efeito significativo sobre o retorno de todos os tipos de investimentos, e as empresas negociadas através de ações não são diferentes. Essa taxa atua como uma espécie de força da gravidade sobre as cotações das empresas: quanto maior a taxa base, menores tendem a ser as cotações. Hoje vemos uma tendência de queda nas taxas de juros, que já perdura alguns trimestres e não dá sinal de reversão no futuro próximo. Com base nisso, podemos acreditar que as cotações, de uma maneira geral, têm um caminho de subida pela frente.
Mesmo com a sorte de um bom retorno este ano, posso contar alguns erros cometidos: a Mobly, a Multilaser, o Pão de Açúcar e, de certa forma, a Graziottin. São empresas com características diferentes entre si, mas que até o momento não vêm nos trazendo bons resultados. Sim, 3 dessas 4 são do varejo, um setor difícil por natureza e em contínua disrupção. O Pão de Açúcar se tornou uma análise mais complexa quando desmembrou os supermercados Éxito, da Colômbia. Mantemos as ações que recebemos do Éxito e estamos acompanhando ambas as redes de supermercados, agora separadamente.
Sigo no trabalho de sempre: encontrar empresas extraordinárias a bons preços, ou empresas boas a preços extraordinariamente baixos. Continuo acreditando que uma boa ideia por ano, em média, pode continuar nos trazendos bons resultados. Veremos o que 2024 nos traz.
Tudo de bom para você, seus familiares e amigos. Obrigado pela confiança e parceria,
O Italy Divide é um evento ciclístico com largada em Pompeia, Napoli, e chegada em Torbole, no Lago de Garda. São mais de 1300 quilômetros de extensão e 22500 metros de altimetria acumulada. Os terrenos são muito variados, do asfalto mais perfeito a trilhas fechadas, com direito a lama, cascalho e possibilidade de neve. Os ciclistas não recebem suporte externo. O relógio não para e cada participante é livre para se alimentar e dormir como quiser.
A prova é uma não-corrida: a primeira pessoa a chegar não ganha prêmio nem título, mas é celebrada em postagens nas redes sociais. O espírito incentivado pelo organizador Giacomo Bianchi é de aproveitar ao máximo o percurso que, todos os inscritos sabem, é muito belo e desafiador.
Minha história com o Italy Divide começa logo depois do Bikingman Brasil 2021, ou provavelmente antes. Em 2017 morei com minha família em Roma e em Lucca por um total de 5 meses. No ano seguinte moramos em Lucca mais uns 3 meses. Já na nossa primeira temporada italiana, eu e minha esposa Stefania compramos duas bicicletas simples, uma cadeirinha de criança e levamos nossa filha Olivia, então com 2 anos e meio de idade, por giros na Toscana.
Recém chegado em casa do Bikingman 2021, e muito frustrado por não ter conseguido completar aquela prova, abri o site do Italy Divide. Eu já vinha namorando o evento, e os detalhes da prova tinham acabado de sair. A combinação de local e data da largada atingiram minha alma em cheio: Pompeia, 23 de abril.
Pompeia é um dos lugares que mais me impactou em toda a vida. A beleza e preservação do passado, a sofisticação com que os habitantes viviam na cidade há mais de 2 mil anos, a arte, misturadas à tragédia expressa nas construções e principalmente nos famosos corpos mumificados vivos e transformados em esculturas assustadoras — eu não estava preparado para a magnitude daquilo e fiquei semanas bastante comovido. Eu vivia em Nova York durante a grande catástrofe ocidental deste século, o 11 de Setembro, algo que me deixou memórias muito intensas, e penso que associei mentalmente os dois eventos.
A data de 23 de abril é especial para mim porque é o aniversário do meu pai. Foi ele que, certamente sem querer, me introduziu ao ciclismo de longa distância. Eu tinha uns 11 ou 12 anos quando ele começou a me levar para pedaladas em dupla pelo bairro onde morávamos, a Barra da Tijuca. O trajeto de uns 14 quilômetros era imenso para mim, as aventuras marcantes e os momentos de parceria filho-e-pai, um presente. Muitos anos depois, quando comecei a viajar de bicicleta, meu pai ficou apavorado, mas aí já era tarde demais. Outros tantos anos depois, meu pai que havia me inspirado a gostar de bicicleta perdeu parte da visão. Lembro de um pedaço de conversa que tivemos depois, em que eu resmunguei sobre alguma falta trivial da vida, não poder comprar alguma coisa ou alguma bobagem semelhante, e ele comentou mais consigo mesmo do que para mim: “eu queria poder dar uma volta de bicicleta”.
Levei a preparação bastante a sério: passei a ser treinado pelo Nuno Lopes, técnico e ciclista com experiência de ultra distância em provas como a Trans Am Bike Race. Fiz consultas e um programa nutricional com o Rafael Brasilia, que acompanha atletas brasileiros de nível mundial. Troquei minha Cannondale Topstone por uma Specialized Diverge 2021, que comporta pneus mais largos, muito úteis para provas de bikepacking. Estudei e pratiquei manutenção na bicicleta, aumentando muito o meu repertório de reparos e ajustes. Fiz também algumas viagens usando o bivaque, uma espécie de mini-tenda do tamanho de uma pessoa, para me habituar a acampar com o equipamento adequado.
Roma
Embarquei no Rio de Janeiro em 15 de abril, voando para Roma com escala em Paris. A mudança de avião seria rápida, eu tinha pouco mais de uma hora. Da minha parte deu tudo certo, e eu ainda consegui curtir a paisagem no vôo entre a França e a Itália. Ao desembarcar, não demorou muito para ficar claro que a minha bicicleta não tinha chegado ao destino. A empresa não conseguiu fazer a transferência da minha única peça de bagagem, com todo o meu equipamento, em tempo hábil.
Por sorte, e também graças ao aviso prévio do amigo Vinicius Martins de que um atraso de bagagem poderia acontecer, eu havia feito uma reserva para a primeira noite em um hotel próximo do aeroporto, na cidade de Fiumicino.
Apesar da frustração de não encontrar logo as minhas coisas, a comunicação com a companhia aérea foi eficiente e logo ficou confirmado que assim que o dia raiasse a bicicleta estaria no aeroporto. Sendo assim, decidi percorrer a pé os 3 quilômetros até o hotel, aproveitando um belo pôr-do-sol. Mesmo em um trajeto que não se pretende turístico, passei por algumas ruínas milenares e já comecei a sentir a alegria e a vibração de estar em um lugar tão especial.
Tomei banho e fui caminhar rumo ao centro de Fiumicino em busca de algo para comer. Encontrei um lugar agradável com muitas famílias locais, e ali comi uma Pinsa de pistache. Dizem que a Pinsa é uma espécie de precursora da pizza que conhecemos hoje, muito leve e com a massa um pouco inflada e macia por dentro. Ela, e mais uma garrafa de cerveja Ichnusa, tranquilizaram todas as minhas preocupações e me encaminharam para uma boa noite de sono.
Acordei com calma, tomei o ótimo café da manhã do hotel (já adianto que ao longo deste relato eu não vou comer mal em momento algum, isso é uma tarefa muito difícil na Itália) e, novamente a pé, voltei para o aeroporto. Fui atendido com cortesia pelos funcionários, sempre me arriscando ao máximo no italiano que eu havia praticado ao longo de meses, com meu simpático professor Davide Rossi.
No último guichê, ouço da atendente que a caixa com a minha bicicleta me esperava do outro lado do grande saguão de bagagens. Um alívio me veio ao enxergar a grande caixa de papelão, e um choque em ver ao lado da caixa uma pessoa muito parecida com a minha tia Adriana, já falecida. Era uma senhora que cuidava da área, e a semelhança física era impressionante. Minha tia Adriana era a mais italiana dos membros da minha família, mesmo nunca tendo, acredito eu, visitado a Itália. Eu não entendia esse amor. Para mim a Itália era o país que ganhou do Brasil na Copa de 82, e não um país ao qual eu pertencesse. Morando lá, meu sentimento se transformou em um grande amor. Portanto, encontrar uma sósia da minha tia ali me trouxe uma sensação de estar sendo abençoado naquela aventura, mais ainda quando ela sutilmente me encorajou a montar a minha bicicleta ali mesmo.
Não sei quanto tempo levei, talvez uma hora ou mais. O fato é que consegui remontar a bicicleta inteira, encaixei todas as bolsas e aparentemente não sobrou nem faltou peça alguma. Uma façanha rara na minha carreira de mecânico.
Saí do aeroporto com o Sol já alto e temperatura amena, talvez uns 20 graus. Na bicicleta eu notava apenas o câmbio um pouco desregulado e o freio dianteiro baixo demais. Sabia que meu pneu traseiro estava com câmara de ar, e não líquido selante, o que não seria ideal para a prova. Mas dava para seguir. Em alguns minutos, o caminho para Roma entrava em uma ciclovia que seguiria paralela ao rio dos rios, o Tibre, ou Tevere em italiano. O rio de Roma, o rio da civilização ocidental. A ciclovia era perfeita e deslumbrante, com belas ruínas e famílias passeando a pé ou de bicicleta naquele domingo de início de primavera.
Indo sem pressa, em cerca de duas horas eu estava na Roma que conhecia. Cheguei pelo Tevere, inclusive seguindo pela pista de esportes que margeia o rio em direção ao Vaticano, Trastevere e Piazza Navona. Depois de dois anos de pandemia, a mera possibilidade de viajar seria por si só uma alegria imensa. Naquele lugar então, eu ria sozinho.
Antes mesmo de ir para o meu apartamento alugado, almocei na Pizzeria da Baffetto (Pizzaria do Bigodinho), que tem uma extraordinária pizza ao estilo romano e ingredientes muito saborosos. Para minha grande honra, os garçons me reconheceram e não só autorizaram como pediram que eu guardasse a bicicleta no mítico depósito da Baffetto, um lugar levemente bagunçado mas que guardava, além de cerveja e refrigerantes, alguns séculos de História. A pizza foi a cereja do bolo e o apartamento que aluguei foi muito acima de todas as expectativas.
Passei dois dias e duas noites muito felizes em Roma. Eu trabalhei naquela semana, não foram dias de férias. O que fiz foi levar meu laptop para a rua e trabalhar de igrejas, calçadas, em frente ao Castelo Sant’Angelo, aproveitando o enorme privilégio de ser um nômade digital.
Roma—Frosinone
Acordei às 4:30h da manhã da terça-feira, dia 19 de abril, para começar a pedalada rumo a Pompeia. Ao sair do apartamento, a luz do dia ainda não havia aparecido e a temperatura era de 7 graus. Pedalar com uma bicicleta gravel pelos paralelepídos característicos do centro histórico de Roma, deserto àquela hora, foi um breve delírio. Virei à esquerda na Via del Governo Vecchio, andei alguns quarteirões, logo à direita na pequena Via Sora onde morei em 2017, e poucos metros adiante outra esquerda na avenida Vittorio Emanuele. Em poucos minutos o céu já ganhava um tom mais claro e eu chegava em frente ao Coliseu. Ao fundo, baixa e quase cheia ainda, a Lua se encaixava no cenário.
Planejando o trajeto de Roma a Pompeia preferi não usar o percurso do Italy Divide, ainda que fosse no sentido inverso. A ideia era conhecer lugares diferentes, ao mesmo tempo usando uma rota menos desgastante. Escolhi um caminho pelo interior que passaria por Frosinone, saindo de Roma por uma estrada muito antiga, a Via Casilina.
A saída da capital lembrou a saída de qualquer grande cidade, passando por bairros de residências mais simples e antigas áreas industriais, ainda que em outra proporção se comparada a uma Avenida Brasil carioca. A Via Casilina é bastante urbana e parece mais outra avenida do que uma estrada. As primeiras horas de viagem, portanto, envolveram muita atenção com o tráfego. O Sol subia e aquecia o ar, e fui removendo camadas de roupa. Parei para um café na altura da cidade de Laghetto. Pedi um cappuccino e ganhei um upgrade: ele veio numa taça imensa daquelas de milkshake, transbordando. Saí feliz pelo carinho e por ter conseguido conversar com o atendente indiano com forte sotaque de Napoli.
Sabendo que eu teria que trabalhar ainda naquele dia, não fui exatamente passeando. Segui em um bom ritmo pela Casilina até chegar em Frosinone na hora do almoço. Foram 93 quilômetros. Antes de procurar um hotel, passei em uma excelente loja e oficina, a Toni Bike. A princípio o proprietário e mecânico hesitou em me atender — a fila de bikes aguardando cuidados era visível e enorme. Ao perceber que se tratava de um cicloviajante, ele foi mudando de ideia. Depois que contei para ele que ia para o Italy Divide, ele parou tudo o que estava fazendo, instalou selante no meu pneu e regulou o câmbio da bicicleta com maestria. Eu começava a entender a paixão do italiano pelo ciclismo. Ele me cobrou somente 5 euros pelo serviço e ainda me deu um protetor contra o frio no pescoço e no rosto com os logotipos da sua loja, que eu usaria bastante na prova.
Fiquei no primeiro hotel razoável que encontrei, tomei um banho, abri o computador e trabalhei até a noite.
Frosinone—Pompeia
Acordei bem antes da quarta-feira clarear. Apesar do plano inicial de dividir o trajeto até Pompeia em pequenas prestações, a previsão do tempo dizia que no dia seguinte choveria bastante. Eu estava viajando com um laptop nas costas, e não poderia me arriscar a molhar minha mochila. Decidi pedalar até Pompeia naquele dia mesmo. Ainda no escuro, eu estava de volta à via Casilina seguindo para o sul.
Fui me aproximando do litoral em um percurso que teve boas paisagens. O trajeto criado pelo Google Maps me levou por estradinhas de terra bloqueadas e pontes em que tive que empurrar a bike. Não foi muita coisa, foi divertido e foi bonito. Quando cheguei no litoral, a verdade é que não passei quase tempo nenhum à beira-mar, e sim em uma estrada paralela às praias. Passei por cidades como Mondragone, já na região da Campania, conhecida pela criminalidade até não muito tempo atrás. Dizem que para entrar lá as pessoas tinham que pagar pedágio para a turma local. Não me pediram absolutamente nada e a cidade também não mostrou charme nenhum, apenas uma sequência de lojas e restaurantes na avenida.
A hora do almoço não estava longe quando comecei a me aproximar de Napoli. O trajeto previsto passaria bem por dentro da cidade. Para mim esse caminho parecia bom, porque seria diferente do que eu faria em sentido oposto no Italy Divide. Eu estava em um trecho muito plano, com ruínas e grandes áreas que pareciam ser de cultivo, porém sem nada plantado naquele momento. Depois de uns 30km assim, a cidade começou a se montar. Primeiro galpões, depois algumas fábricas pequenas, em algum momento uma birosca, até tudo se transformar em uma avenida. Passei por muitos africanos de bicicleta também. Não pude deixar de notar que alguns motoristas eram muito grosseiros com os africanos, buzinando e tirando finas. A verdade é que o racismo existe com força na Itália, algo que eu já sabia, havia testemunhado de outras formas, e lamento muito.
Ainda na entrada de Napoli, parei em um bar. O conceito de bar na Italia é muito diferente do bar no Brasil. Na Italia, bar é onde se toma café e faz pequenos lanches. É possível fazer uma fézinha em um caça-níquel eletrônico nos bares mais rasteiros. Comi uma pizza barata, enchi as garrafas e não fiz fé nenhuma.
Poucos quilômetros depois emparelhei com uma ciclista usando todo o equipamento de quem pedala a sério, inclusive uma bela bicicleta Bianchi de estrada. Embaixo do selim ela tinha uma bandeirinha de arco-íris, que por lá poderia simbolizar simpatia LGBT, apoio à Ucrânia contra a Rússia, ou talvez até uma mistura das duas coisas. Em movimento ela me perguntou de onde eu vinha e para onde eu ia. Contei. Falei do Italy Divide. Ela parecia saber da prova, e me disse entusiasmada que já tinha feito essa viagem de bike até o norte da Itália, e que tinha gostado muito. Ela ofereceu de me guiar por uns 10km por um caminho mais bacana e fora das autoestradas. Aceitei e de fato fomos por uma vicinal que chegou no centro pelo alto da cidade, oferecendo um visual bem bonito. Nos despedimos conversando mais um pouco. O nome dela era Imma, ela gosta de fazer longas distâncias e eventos randonneur pela Itália—inclusive faria um brevet Napoli-Roma-Napoli de 400km no sábado seguinte. Trocamos Instagram e segui em frente.
Napoli é uma cidade de extremos que lembra o Rio de Janeiro. Mar e morros, uma baía, problemas sociais, crime, charme e calor humano. Na outra vez que estive em Napoli entramos na cidade por outro lado. Desta vez, desci para a baía passando por um lindo parque e depois uma avenida de paralelepípedos cheia de construções antigas e muito bem conservadas. Foi maravilhoso. O trânsito caótico napolitano é celestial se comparado ao carioca. Acabei chegando na estação de trem, virei à esquerda e cheguei na zona portuária do Rio. Sim, era a de Napoli. Mas ambas são iguais.
Apenas segui em frente e a cidade foi acalmando um pouco. Em meia-hora cheguei a Herculano, cidade vizinha a Pompeia e que também foi completamente devastada junto com a irmã mais famosa. A bem da verdade, em alguns lugares eu pedalei por terra que foi criada pela própria erupção do Vesúvio há 2000 anos, e que antes era mar. Já eram umas 16 horas quando cheguei ao Camping Zeus, em que eu me hospedaria até o sábado, e onde a prova largaria. O conceito de camping na Italia e na Europa frequentemente inclui uma estrutura para motor-homes, banheiros limpos com chuveiros, máquinas de lavar e secar, e frequentemente quartos de verdade para quem quiser algo mais convencional. Eu já vinha com reserva para um quarto, e nele entrei depois de quase 170km pedalados. Tomei banho, comi alguma coisa e abri o computador para trabalhar.
Os dois dias seguintes foram de descanso, lavanderia, trabalho e alguns passeios por Pompeia. A visita à Pompeia histórica foi tão impactante quanto da primeira vez. Ali existem muitas construções de gigantesca importância e utilidade para entendermos a História do Ocidente. O anfiteatro muito bem preservado é apenas um dos lugares famosos de lá, e onde fiquei um bom tempo desta vez. Ao mesmo tempo, pensar e sentir aquela catástrofe não é algo simples. Um peso foi batendo na alma.
De volta ao camping, fui encontrando outros participantes do evento. Os primeiros que cumprimentei, logo na chegada, foram os americanos Gary Johnson e Nelson Carter. Ambos estavam na casa dos 60 anos, o primeiro bastante alto e forte, o segundo não tão alto e mais magro: o biotipo do ciclista. Muito simpáticos, eles me contaram que pretendiam fazer a prova o mais devagar possível, aproveitando ao máximo a viagem. Eu comentei que pensava da mesma forma, e imaginava completar o percurso em 6 dias. Eles riram e avisaram que o plano deles era de terminar em até um mês. Aí eu ri também. E ainda riria mais da minha própria estimativa.
Esse é o espírito do Italy Divide. Não há tempo limite para os participantes cumprirem o trajeto e serem considerados “Finishers”. Eu ainda entenderia muito mais detalhes sobre o espírito da prova, que no fundo reflete o jeito de ser do Giacomo Bianchi, criador e organizador de tudo aquilo.
Na noite anterior à largada haveria uma pizza e refrescos no restaurante do camping, reunindo os participantes. Tendo trabalhado até tarde para entregar tudo o que pudesse antes de entrar de férias, cheguei no restaurante já depois das 21 horas. Todas as mesas estavam lotadas. Era bastante gente, umas 200 pessoas. Talvez transferindo para o jantar o desencaixe que vinha sentindo no trabalho, fui jantar sozinho na cidade, voltei e dormi cedo.
Dia 1: Pompeia — Scauri
O dia amanheceu ensolarado e agradável. No café da manhã mais uma vez se via a proporção do evento, muito maior do que todos os outros que eu havia participado até então. Dividi mesa com Gary e Nelson. Fiquei sabendo que o Gary era relativamente novato em eventos de longa distância, e estava apreensivo. Já o Nelson tinha anos de experiência com cicloturismo e competições, e estava bastante tranquilo.
Voltei ao quarto para fazer as últimas arrumações na bicicleta, separando também uma mochila que iria no caminhão dos organizadores até a chegada. Meu quarto era no térreo e tinha uma varanda que se comunicava com as varandas de outros quartos. Fazendo meus ajustes na varanda, conheci meu vizinho: Marin de Saint-Exupery. Ele perguntou sobre as minhas expectativas, e falei para ele da minha vontade de aproveitar o trajeto com calma e completar em 6 dias. Lembro de ter falado que quando fizesse esta prova pela terceira vez, aí sim ia querer competir — de onde essa ideia saiu, eu não sei até agora. Marin me contou que trabalha como courier ciclístico na Suiça, já tinha feito diversas provas de ultra distância e largaria para vencer em 3 dias. Falei que torceria por ele, e algo me disse que ele não estava iludido.
A largada que estava prevista para as 11 da manhã foi se atrasando. Um oceano de ciclistas conversava e tomava café ou apenas descansava aguardando. A grande maioria das bicicletas era gravel, mas se via mountain bikes também, de todas as marcas que se pode imaginar.
Já era 12:20 quando Giácomo começou sua preleção. Ele recomendou cuidado com o trânsito napolitano, que aproveitássemos ao máximo o percurso, e repetiu seu leitmotif sobre o evento: “[sic] Is not a race! (não é corrida!)”. Ao final, ele recomendou que não atravessássemos os Apeninos à noite, a não ser que fôssemos o Jay Petervary (famoso ultraciclista que mora no gélido Idaho e já venceu o Italy Divide, para não falar de provas no Alasca). Eu nem sabia o que eram os Apeninos, e em rápida busca no celular concluí que era o trecho entre Florença e Bolonha. Ainda tinha chão até lá.
Era pouco mais de meio-dia e meia quando finalmente largamos. Saí mais para o final do imenso comboio. Viramos à esquerda saindo do camping e margeando à direita as escavações históricas de Pompeia, numa grande emoção. Nem 300 metros mais tarde, viramos à esquerda. Quem como eu estava na traseira do pelotão foi surpreendido pelo semáforo sinalizando a passagem de um trem. Ficamos para trás e “perdemos” uns 3 minutos esperando o sinal ficar verde. A verdade é que nunca mais eu alcançaria ninguém que havia passado antes do trem.
Os primeiros 15km são urbanos. No começo um bloco de dezenas de participantes, misturando festa e nervosismo. Em seguida a estrada de asfalto começa a apontar para cima, e segue com uma inclinação suave por alguns quilômetros. Todos ali já sabiam: aquilo era o pé do Vesúvio. No quilômetro 20 a subida fica séria. No início ainda ficamos no asfalto, mas em pouco tempo o trajeto vira um parque, e a estrada passa a ser de terra. Lembro de andar próximo a algumas pessoas com quem eu pouco conversei ali, e que mais tarde reencontraria. Vou aprendendo que, ao menos para mim, os inícios de eventos longos são momentos de ficar mais em silêncio, processando a adrenalina e a antecipação do que está por vir.
A subida do Vesúvio tem 8km de extensão e ganho de quase 900 metros em altitude. Não seria nada demais se não se tratasse do Vesúvio, com sua História e cinzas vulcânicas de muitos centímetros de profundidade. A estrada vai ficando cada vez mais solta até que não resta alternativa a empurrar a bike. Eu tentei pedalar o máximo possível enquanto quase todos estavam empurrando a bike. A bem da verdade, ao longo dessa prova recalibrei minha relação com empurrar a bike, aceitando muito melhor que empurrar pode ser uma ótima ideia.
O cenário vai ficando mais árido conforme subimos. A vegetação vai perdendo árvores, e aquelas que sobravam ainda estavam peladas do inverno. Só chegando no topo pudemos ver um pouco de Sol novamente, atrás de um pesado mormaço.
A descida começa antes de chegarmos à cratera, e o cenário muda rápido. Logo avistamos a Baía de Napoli e a grande cidade, tudo muito bonito. Uma parada no mirante para absorver o visual e ser ultrapassado por múltiplos “adversários”, depois completo o mergulho.
O trajeto do Italy Divide é todo desenhado para percorrer os lugares mais bonitos do país e de cada cidade que cruzamos. Napoli abre os trabalhos sem economizar: passamos pelo Palácio Real, pelo Castelo Novo e pela Piazza del Plebiscito, que lembra muito a entrada do Vaticano. À esquerda, o mar. Uma rápida parada em um supermercado, compro umas fatias de pizza, água e suco. Seguindo entro na Baía de Pozzuoli, depois uma subida no Monte di Procida e outro visual estonteante: o Vesúvio ao fundo, atrás das duas baías que percorri.
Descendo o Monte di Procida começa o primeiro dos dois grandes trechos planos da prova. Seguimos o litoral da Campania rumo ao norte, pelo asfalto. A tarde caía e o pedal rendia bem. No começo estive com vários participantes. Notei que muitos seguiam em pequenos pelotões ou em duplas, como numa prova de ciclismo de estrada em que um atleta quebra o vento do outro. Em quase todos os eventos de bikepacking, os inscritos no modo solo são proibidos de pedalar próximos. Aos poucos fui entendendo que essa prova era bem livre, inclusive em relação ao caminho.
Esse foi um dos únicos trechos sem grande interesse a cada quilômetro de toda a prova, mas também foi o único em que o pedal rendeu bastante.
Já próximo das 21h cheguei a Scauri, uma das primeiras cidades litorâneas do Lazio. Eu carregava um saco de bivaque e colchão de ar para dormir acampado se fosse necessário, mas preferia dormir em pousadas ou hotéis todas as noites para descansar bem e aproveitar ao máximo a viagem, evitando sacrifícios a não ser o de algumas horas de sono.
Sem reserva em pousada, perguntei aos moradores onde poderia dormir e toquei em um albergue minúsculo, na verdade uma casa. Lá dentro, no escuro, vi dois participantes do Italy Divide. Eles mal falaram comigo, a não ser para informar que eles tinham feito reserva e aquele era o único quarto. Ouvindo o diálogo, uma vizinha se ofereceu para me ajudar e sua mãe insistia amavelmente para que eu entrasse e tomasse um café com elas. Eu imaginava como estaria fedendo àquela hora e o quanto eu não queria tomar café justo na hora de dormir. E a senhora se comunicava comigo em um dialeto, misturado a uma dificuldade de fala da idade provecta, mais a minha cognição prejudicada pelos 150km que eu havia pedalado até lá. Ela era muito amável, mas agradeci e segui para um Albergo Aurora.
No hotel, o atendente me encaixou em um quarto de funcionários sem janela, porém limpo. O preço: 80 euros. Apenas mais uma vez em que fui roubado nesta vida, mas foi o preço que paguei por não querer me travar no planejamento e pela pouca experiência na empreitada. Tomei banho e fui jantar no restaurante mais próximo: salada, um enorme prato de macarrão e uma cerveja.
Voltei para o hotel perto das 23h, coloquei o despertador para as 4, mandei uma rápida mensagem para a família e para o Nuno, e desmaiei.
Dia 2: Scauri — Velletri
Acordei no primeiro toque do despertador. Abri o celular e vi as respostas do Nuno. Nada extremamente específico, um misto de lembretes importantes sobre gestão da mente/tempo/corpo e encorajamento, este último o mais importante de tudo. Boa parte da razão de ter o Nuno como técnico era mesmo ter alguém me encorajando: na minha família ninguém me apoiava muito nessa ideia, mais preocupados que eu permanecesse vivo.
Saí do quarto e vi duas bicicletas de cabeça para baixo no saguão do hotel. Pelas placas da prova eram dois austríacos. Ainda estava escuro quando subi na bicicleta e comecei o segundo dia.
Em menos de meia hora eu havia entrado em uma área mais rural. Com o dia querendo amanhecer, vi atrás de uma casinha antiga alguém brotando de seu saco de bivaque. Faz lembrar uma borboleta saindo do casulo. Sem dúvida era alguém da prova, até pela bicicleta. Ele não estava muito perto, e claramente havia tentado escolher um lugar discreto para dormir, então apenas segui em frente.
Voltando para a estrada principal, quase chegando em Sperlonga, encontrei uma lanchonete aberta. Entrando, vi mais dois participantes já tomando seus cafés. Eu tinha ficado perto deles em vários momentos no dia anterior, mas não tinha conversado e nem reparado muito em quem seria. Para minha surpresa, agora com um deles sem capacete, vi que era o Massimo Muttoni, o único italiano a vir para o Bikingman Brasil 2021 e que completou aquela prova durante a festa de celebração, sendo aplaudido por todos. Acabou sendo um café da manhã bem alegre. Fiquei conhecendo seu amigo Alex, de Saiano—cidadezinha na Lombardia que, dizem alguns familiares, me legou o sobrenome.
Com o Sol aparecendo, toquei em frente. Ainda de manhã comecei uma subida duríssima: o Circeo. É uma falésia em que chegamos a 400 metros de altitude, frente a um mar muito azul. Não é tão alto assim, porém a estrada é um rio de pedras enormes e soltas em curvas de nível acentuadas. Hora de empurrar e muito. Sorte que o dia estava lindo.
A travessia levou boa parte da manhã. Depois eu soube que muita gente “bivacou” nessa subida na noite anterior — só imagino o frio, mas o visual devia estar excelente. Na descida passamos pelo primeiro trecho de trilha fechada, terra e lama da prova. Era um dos diversos bike parks que atravessaríamos, onde as mountain bikes se saíam bem melhor do que as gravel. O Italy Divide tem muitos trechos de mountain bike de verdade, diferente de um Bikingman Brasil ou dos brevets mistos que temos no Brasil, que apesar das grandes dificuldades acontecem sempre em estradas mais pedaláveis.
Quem não é bom de mountain bike tem que ir tocando as trilhas com calma e paciência. É o meu caso. São trechos que podem ser muito divertidos, ou um suplício, dependendo de como está nossa cabeça. Consegui me divertir, mas sempre com bastante cuidado para não bater o câmbio em uma pedra ou acabar com minha prova de algum jeito mais criativo.
Concluído o bonito parque, estamos de volta à beira-mar. Debaixo de Sol forte, o trajeto segue pela avenida da praia até um desvio para a direita em Sabaudia. Já estavamos na província de Latina. Essa área pantanosa foi drenada sob ordens do ditador fascista Benito Mussolini em 1933, e a cidade construída ali. A arquitetura é muito diferente do resto da Itália, e bem característica do fascismo italiano: caixotes sem nem um vestígio de charme. Já era uma da tarde e almocei uma salada com tiras de carne na praça central. Fiquei imaginando o que as pessoas dali pensavam de morar num lugar tão associado ao fascismo. Claro, não tive coragem de perguntar.
Saindo da cidadezinha, vi um “alimentare”: uma vendinha. O senhor me disse que a mozzarella estava esplêndida, que por ali haviam ótimas fazendas de búfalas. Convém acreditar nessas pessoas. Levei duas, mais umas 8 “clementines”, pequenas tangerinas que estavam na época. A mozzarella legítima, italiana, é tão diferente das que comemos no Brasil quanto as pizzas napolitanas são diferentes das que comemos no Rio de Janeiro. É como comer uma feijoada no Cacique de Ramos depois de uma vida comendo feijoada na Groenlândia. As bolas de queijo, do tamanho de uma maçã, vêm em um saco de plástico com água e ficam muito úmidas e macias. A mistura de líquido, sal, carboidrato, proteína e placebo deu grande energia. As clementines hidratavam também, e alegravam a tarde ensolarada atravessando um lindo bosque por estradas de cascalho.
Depois de atravessar alguns lagos, chegou a hora de me despedir do litoral. Uma parada no pier de Capoportiere, um adeus ao mar, e segui perpendicularmente à costa. Atravessei Latina e comecei a subir: primeiro foi Norma, uma das muitas e maravilhosas cidades medievais (ou anteriores a isso) em cima de serras e morros. Essa subida foi longa, e nela vi diversos participantes da prova. Passado o nervosismo da largada, as pessoas davam os primeiros sinais de querer se comunicar. Diferente do Brasil, ali as pessoas pareciam mais reservadas, talvez pela variedade de línguas e culturas. Chegando a Norma, parei em uma loja de conveniência e conversei um pouco com o Michal, da República Tcheca. Ele parecia muito bem, mas sofrendo um pouco com o calor. A cidadezinha era muito bonita, mas a ideia era seguir bem mais, ainda que eu não tivesse ideia até quando ou onde.
Seguimos até Cori, e uma francesa me perguntou onde eu iria dormir aquela noite. Falei que não sabia. Ela falou que tinha reserva em Velletri. Anotei o nome mentalmente, e olhando o mapa me pareceu um bom ponto para não dormir tarde. Outros ciclistas que cruzei falaram o mesmo.
A noite veio chegando e o tempo foi ficando fechado. Estávamos a uma altitude de 500m. Não é muito, mas o clima tinha mudado. Começou a esfriar com o cair do Sol. Em um dado momento, perguntei para algumas pessoas na estrada a quantos quilômetros eu estava de “Velétri”. Ninguém me entendeu. Depois de um tempo, um deles falou: “Ah, Velêtri? Uns 10 quilômetros.”
Cheguei a Velletri com um resto de luz do dia. É uma cidade com a parte baixa e a parte alta, sendo a parte alta o centro histórico. Ainda na parte baixa, parei em um supermercado e comprei lanches para comer no quarto da pousada e nem precisar sair para jantar.
Ao chegar na parte alta, vi alguns participantes da prova em um café, comendo ou tentando resolver pouso para a noite. Conheci uma dupla da Inglaterra, pai e filho, que falaram que iriam para um hotel bem lá no alto da cidade, e que teria vaga. Tom, de 66 anos, e Oliver, de uns 30 e poucos. Começava a chover e fui sozinho. Chegando lá, o hotel era espetacular, com um restaurante sensacional. Tom e Oliver chegaram logo depois. Tom falou que roncava muito e perguntou se eu queria dividir um quarto com o Oliver. Para mim estava bom: era uma economia. Acabamos dormindo na mesma cama, algo muito comum em eventos de longa distância, e extremamente tranquilo já que todos estão semimortos mesmo. Ninguém se mexe.
Eles desceram para jantar, estavam em modo curtição extrema. Eu tinha que estar de volta a Roma 8 dias depois da largada para encontrar com minha família, e ia percebendo que eu até que estava apressado, na comparação com a turma. Sendo assim, comi um pouco do que tinha comprado, tomei um banho, lavei as roupas, organizei as coisas, falei com a família, mandei uma atualização para o Nuno e fui dormir tendo curtido muito esse primeiro dia inteiro de prova.
Dia 3: Velletri — Viterbo
Acordei às 4 da manhã. Para não incomodar o Oliver, saí do quarto e fiz os preparos para o dia em uma área no térreo do hotel. Fiquei um bom tempo perdido até encontrar a bicicleta, que na Itália eles nunca permitiram que ficasse no quarto comigo.
Havia diversas bicicletas da prova junto com a minha, certamente mais de dez. Montei minhas sacolas na bike, ouvi as mensagens do Nuno e saí ainda com o escuro da noite, descendo tudo o que eu havia subido da cidade para o hotel.
Hoje era dia de passar por Roma. Antes da prova, eu imaginava dormir muito perto de Roma na segunda noite, talvez depois de Roma até, mas não foi bem assim que aconteceu. Antes eu precisaria atravessar uma área, e um parque, chamados Castelli Romani.
Agora o mountain bike foi sério. Um trecho de pouco mais de uma hora, e com a trilha molhada da chuva ao longo da noite. Felizmente o caminho não estava encharcado, e pude pedalar tudo. Subidas inclinadas e curtas me fizeram suar mesmo no frio e na névoa do amanhecer. Já com um pouco de luz do dia, cheguei a Nemi, a menor vila dos Castelli Romani, e um lugar de imenso charme. Dizem as lendas que Nemi compartilha misteriosas coincidências com a cultura Celta. O bosque no entorno do vilarejo, o mesmo que eu acabara de cruzar, guardaria propriedades mágicas e sagradas. Isso eu fui saber muito mais tarde. Naquele momento apreciei por alguns instantes a vila ainda deserta, parado em uma fonte, enchendo minhas garrafas de água.
Lamentando não ter todo o tempo do mundo, e não ter coragem de abandonar tudo e me radicar em Nemi, segui em frente. Voltei a uma estrada de terra, desta vez mais aberta e plana. Vi dois ciclistas me alcançando. Eram o Massimo e o Alex, eles realmente estavam indo juntos. Eles me contaram que também tinham dormido em Velletri. Indo num bate-papo, logo vimos o Lago Albano e chegamos a Castel Gandolfo. Esta cidade é quase um entreposto da Igreja Católica. O Papa tem uma espécie de casa de campo ali, e vemos muitos imóveis com a bandeira amarela e branca do Vaticano. O lugar é muito bem cuidado, até mesmo para os padrões italianos, e a vista do lago a partir da cidade é memorável.
Tomamos um café da manhã ao lado da praça central, cappuccinos com folheados e um sanduíche de porchetta talvez um pouco prematuro dado o horário, se fôssemos pessoas normais e não viajantes consumindo 9000 calorias por dia. O Alex contou histórias de Saiano, e ambos falaram um pouco de como se conheceram em uma edição passada do Italy Divide e desta vez combinaram de ir juntos.
Agora era hora de entrar em Roma, e através de nada menos do que a Via Appia Antica. A bem da verdade, nós já tinhamos percorrido bons trechos da Via Appia desde a largada, já que ela começa em Brindisi, quase na ponta do salto da bota que é o mapa italiano. A Via Appia talvez seja a estrada mais “histórica” do Ocidente, ligando o sul do Mediterrâneo a Roma desde antes de Cristo. A entrada para Roma guarda muito da sua forma de milênios: diversas ruínas, museus, sepulturas, catacumbas, e o calçamento com pedras gigantescas para os padrões atuais.
A sensação de estar em uma viagem no tempo era bem forte. Parei muitas vezes, curti as ruínas, a vegetação, as pedras do pavimento, as pessoas que passeavam ali também. A única coisa que me preocupava era meu freio dianteiro, que já vinha rateando desde a chegada na Itália. Nas descidas da manhã, ele simplesmente parou de funcionar.
Certamente em Roma eu encontraria um mecânico para olhar aquele freio. Só um detalhe poderia atrapalhar: era feriado naquela segunda-feira, era o Dia da Liberação (do Nazifascismo). Era por isso que havia tanta gente passeando em plena segunda-feira. Uma vez dentro da cidade, perguntei para um ciclista local se ele saberia de algum mecânico trabalhando naquela manhã. Ele respondeu categoricamente que eu não encontraria ninguém. Eu ainda tinha o freio traseiro, e aquele dia não tinha previsão de grandes descidas. Acreditei no romano e não investi na busca de uma oficina.
Roma foi uma sequência de cartões postais: Coliseu, Circo Massimo, Tevere, Castel Sant’Angelo, Vaticano. Mesmo já tendo visitado esses lugares algumas vezes, é especial chegar de bicicleta. Difícil encontrar uma cidade mais bonita que Roma.
O feriado fez da saída de uma Roma uma gincana. As avenidas na beira do Tevere estavam todas fechadas para um desfile. Inventei um caminho paralelo até o Foro Itálico, passando por uma avenida expressa sem acostamento, na contramão. Fui bastante xingado pelos motoristas.
Finalmente cheguei à ciclovia que beira o rio e me levaria para o norte. A cidade rapidamente vai ficando sossegada, e os prédios vão dando lugar a gramados imensos no entorno. Atravessei bairros e depois cidades do Lazio, pedalando no asfalto plano que rendia bem.
Era começo da tarde, e recebi mensagem do Brasil: meu Clube de Investimentos tinha recebido o ok da CVM e da corretora para começar a funcionar. Eu já estava esperando por essa notícia havia uns 2 meses. Motivo de comemoração, é claro. Porém, de acordo com as leis, eu e 2 cotistas teríamos que fazer nossos depósitos iniciais naquele dia mesmo.
Não sem motivo, minha memória sobre os lugares em que passei nas horas seguintes é vaga. Lembro mais de ficar pedalando e telefonando para o Brasil para coordenar tudo. Agradeço ao meu irmão Rodrigo e à minha esposa Stefania por ajudar. Me recordo de ter passado por um grande rebanho de ovelhas, pelo centro de treinamento do time da Lazio, por um desvio em um lindo bike park à beira de um rio, e a contínua transição da paisagem para algo mais rural e com as primeiras colinas subindo.
Deu tudo certo com a abertura do Clube de Investimentos, e o pedal estava indo igualmente bem.
O dia foi caindo com uma lentidão que não existe nas nossas latitudes. Ainda com a luz do Sol, em um sobe-e-desce até raro para aquela tarde, um grande susto: em uma descida na sombra, o piso estava cheio de limo. Eu estava rápido, e só tinha o freio traseiro. Uma derrapada e tanto, antes de uma curva fechada. Muita adrenalina jorrada na corrente sanguínea, e felizmente nada mais. Eu precisaria resolver aquele freio logo, porque as subidas estavam recomeçando.
Passada uma estrada de terra ao anoitecer, onde vi cavernas e porcos-espinho, cheguei na cidade de Viterbo. Era uma cidade de maior porte, com uns 70 mil habitantes. Estava de bom tamanho para aquele dia. Encontrei um hotel Best Western, daqueles bem padrão, e logo ao entrar vi bicicletas de outros participantes da prova. Nunca deixa de impressionar que, por mais que haja centenas de cidades e quilômetros no trajeto, sem combinar nada os ciclistas acabam tomando as mesmas decisões.
Ainda era cedo e pude jantar com toda a calma do mundo. Fui a um restaurante ao lado do hotel e jantei com direito a uma cerveja grande. Fiz chamadas de video com a família dali mesmo. Comi um tiramisu de sobremesa.
Já saindo do restaurante, vi em uma mesa três caras que obviamente estavam no Italy Divide: imundos e destruídos. Destes, eu só tinha visto um americano logo antes da largada: ele estava desesperado consertando a bike que tinha quebrado no vôo. Trocamos impressões sobre tudo até aquele ponto, e soube que os outros dois, um italiano e um tcheco, também já tinham participado da prova antes.
Comentei sobre meu freio, que ainda não havia decidido se esperava alguma loja abrir ali mesmo em Viterbo, ou se sairia bem cedo sem freio dianteiro para ganhar tempo, e buscaria uma oficina mais na frente em horário comercial. O americano, de nome Azubuike, me encorajou a esperar ali em Viterbo mesmo, usando o ditado “uma bike consertada é uma bike rápida”. Ele estava bebendo, eu estava levemente ébrio da minha cerveja, e achei que ele falou com sabedoria. Eu ia resolver esse freio em Viterbo mesmo.
Dia 4: Viterbo — San Quirico d‘Orcia
Acordei tarde: 5:30 da manhã. Agora eu já abria os olhos sozinho às 4. Meu sono durante essas pedaladas longas pode ser um desmaio total, ou todo feito de sonhos febris, com imagens misturadas e confusas. Aceito o sono que vier, e até esse ponto eu estava conseguindo dormir todas as noites em boas camas. Eu sentia uma grande sede durante a noite, acordando duas ou três vezes com a boca seca e a língua colada. Bebia de um a dois litros de água, e depois comecei a comer um pouco de sal também durante a madrugada. Isso tudo, mesmo tomando muita água durante o dia. A Itália é bem seca se comparada ao Rio de Janeiro. Ao beber água, eu sentia o líquido voltando até para os meus olhos. Após bilhões de anos de evolução, nós não passamos de esponjas.
No café da manhã encontrei os três do jantar: Azubuike dos EUA, Francesco da Italia e Ian (ou talvez Jan), que acho que vinha da República Tcheca. Eles também decidiram esperar uma oficina ali em Viterbo. Logo apareceram Tom e Oliver também. Tom me disse que precisou de um mecânico em Roma, e não teve problema nenhum em encontrar alguém no meio do feriado.
Com algum tempo até que as oficinas abrissem, o café da manhã rendeu.
Toquei o barco para o Laboratorio Cicli Tomi, um lugar bem avaliado na internet. Chegando lá, fui recebido pelo próprio Tomi. No dia anterior já tinham passado outras pessoas do Italy Divide por lá. Não foi necessário pedir prioridade, Tomi sem hesitar colocou minha bicicleta no suporte e perguntou como poderia ajudar. Conversando comigo e com outro senhor que já estava por ali, Tomi fez a sangria do óleo de freio mais outros pequenos ajustes na bike. Nesse meio tempo fiquei sabendo que o irmão de Tomi havia vencido uma Clássica de Primavera, que a família toda era do ciclismo havia 3 gerações, e que a Tomi tinha uma linha própria de bikes. Essa relação de gerações com o ofício é relativamente comum na Itália. Algumas dessas oficinas crescem muito, como a Bianchi e tantas outras. Muitas marcas italianas eram oficinas cujas bikes se tornaram populares. Outra coisa comum é as pessoas já terem ido ao Brasil, gostarem do Brasil, e gostarem de conversar sobre o Brasil. Diferente por exemplo dos americanos, para quem o Brasil normalmente é algo desconhecido, para os italianos o Brasil frequentemente é um paraíso, ou ao menos um lugar que eles gostam. O amigo do Tomi gostava, portanto falamos do Brasil.
Já eram 10 da manhã quando saí do Laboratório do Tomi. A bike estava boa novamente. E o caminho, que já estava muito bonito, extrapolaria os limites do maravilhamento.
A próxima cidade foi Montefiascone. Parei em um bar que, por fora, parecia algo muito simples. Entrando, era um lugar inesperadamente sofisticado. Caffè Centrale. O cappuccino era excelente. Dizem que os italianos só tomam cappuccino bem cedo. Eu tomo cappuccino a qualquer hora do dia, e nunca me criticaram.
A oscilação entre mato e luxo continuou na saída de Montefiascone. Ainda no clima do café chique, vi a estrada se transformar em um oceano de galhos caídos. Parecia que haviam derrubado todas as árvores e jogado os restos no caminho. Atravessei aquilo empurrando a bike.
Agora, a maior parte do trajeto era estrada de cascalho. Estávamos em região de morros. O tempo continuava perfeito. Antes de chegar em Civita di Bagnoregio, alcancei Tom e Oliver, que tinham acabado de consertar um rasgo na lateral do pneu. Eles estavam só aguardando para ver se o reparo ia dar certo. Foi a última vez que os encontrei na prova.
Um dos cartões postais do Italy Divide, Bagnoregio é uma vila muito antiga construída sobre um tipo de rocha que vem erodindo ao longo dos séculos, e hoje resta uma espécie de ilha de pedra com casas antigas. Não sei até que ponto as pessoas exageram, mas dizem que é bom ir lá logo, antes que o resto da cidade desmorone.
O trajeto da prova passa perto da entrada para Bagnoregio. A vontade, claro, é entrar ali e conhecer melhor. Mas essa vontade existe a cada metro da prova. Tomei um sorvete com o inglês Webster, também participante. Não me lembro de nada do que conversamos, mas gostei dele. E também não o encontrei mais.
A surra de beleza tinha começado. Próxima parada: Orvieto. Mais uma cidadezinha nascida de um castelo no topo de um morro. Cada cidade tem sua história, seus detalhes construtivos, seus símbolos e ornamentos. A biodiversidade da Mata Atlântica não tem paralelo na Itália, assim como a diversidade arquitetônica na Itália não tem paralelo no Brasil.
Encontrei um restaurante chinês na entrada do centro histórico. Achei bom variar um pouco a dieta. Em poucos minutos, o tcheco Michal me viu ali e entrou também. Almoçamos juntos. Eu tinha passado por ele na subida, e ele me falou o quanto estava cansado. Falou também que só tinha dormido no bivaque até então.
Começamos a falar de quilometragem, e eu comentei que estava feliz porque já tínhamos algo como 600km cumpridos. Ele me disse um número bem menor. Fui verificar no arquivo da prova, e sim, meu computador de bordo Garmin tinha exagerado meu progresso em mais de 100km. Eu nunca entendi direito o motivo desse erro do Garmin. Por alguns segundos senti um baque, mas eu estava curtindo o caminho e até então não tinha me sacrificado em nada, então não vi motivo para lamentar. Mas a ideia de completar a prova em 6 dias deixou de parecer simples.
Desci de Orvieto me perdendo um pouco pelas vielas. A tarde foi de longas estradas de cascalho em ótimo estado, e subidas razoáveis. Fazendas, rebanhos de ovelhas e ruínas misturadas a construções em perfeito estado. Passei pelo Castelo de Proceno e logo vi uma grande torre retangular no topo de uma serra, à distância no horizonte.
Foi uma longa subida, que foi se transformando em uma duríssima subida. Aquele tipo de estrada de cascalho muito claro, com ciprestes no entorno e colinas até onde a vista alcança, era familiar para mim. O Sol já começava a descer quando consegui chegar na vila daquela grande torre: Radicofani.
Dentro da vila, a sensação de familiaridade aumentou. As cerâmicas e os alimentos expostos nas lojas, os tipos de letreiros, tudo era familiar. Mas foi só quando vi um letreiro dizendo claramente “Toscana” que me dei conta que estava em casa. A região em que me tornei italiano, onde vivi alguns dos dias mais bonitos da minha vida, e alguns dos dias mais difíceis, acompanhando à distância meu pai se recuperando da cirurgia que o salvou mas também tirou parte da sua visão. Ali bateu uma emoção avassaladora, todo aquele tempo de pandemia, depois todo o treino e preparação para percorrer este caminho. Todos os périplos dos meus antepassados que saíram dali e foram parar no interior de São Paulo um século atrás, recomeçar a vida do nada. Todas as loucuras do mundo que forçam o ser humano a emigrar. Lugares maravilhosos que passam por épocas terríveis em que as pessoas enlouquecem e se tornam monstros. Todos os lugares do mundo parecem que são assim. A alegria de conseguir, de chegar ali, meio do caminho, e estar bem de cabeça e de corpo. Sentei em uma praça e chorei.
Minha vontade era chegar em Siena naquele dia, a fantasia era dormir na Piazza del Campo, a praça central, onde acontece o Palio di Siena. Na cidade seguinte, Bagni San Filippo, a noite vinha e jantei em um restaurante delicioso. Tomei até um vinho, com a ideia de continuar noite adentro até Siena.
No escuro, as cidadelas no alto são um colar de esculturas douradas pela luz, que vão crescendo conforme nos aproximamos. Eu estava no Vale d’Orcia, que de vale tinha pouco porque eu só encarava subida. Vieram Campiglia d’Orcia, Castiglione d’Orcia, Rocca d’Orcia. Eram quase 10 da noite quando avistei um trio de ciclistas parados na minha frente, conferindo seus celulares. Eram Azubuike, Francesco e Jan. Eles decidiam onde dormir. Estávamos perto de San Quirico d’Orcia, cidadezinha famosa pela sua lindeza. Pedalando ali à noite, eu queria chegar em Siena mas sentia estar desperdiçando o visual daquele lugar.
Decidi seguir com eles para San Quirico e dormir. Essa cidadezinha é mais uma que transcende adjetivos. É uma atrás da outra mesmo, não tem descanso, você não vai ver um troço feio pra relaxar. É só coisa muito bonita fazendo você reavaliar sua existência inteira, e cumpre a você ali tolerar isso, aceitar que isso existe. Não foi nada fácil achar um hotel com vagas. Acabamos num dos melhores hoteis da cidade. Dividi quarto, e cama, com o Azubuike. Antes mesmo de chegarmos no hotel ele expressava o quanto estava exausto, e dizia não acreditar como a gente estava tranquilo depois de pedalar tanto.
Dia 5: San Quirico d’Orca — Impruneta
Acordei e o dia já tinha raiado. Hoje eu novamente aproveitaria o café da manhã do hotel. Sábia decisão, pois o café foi em um restaurante próximo, primorosamente decorado, e cheio de cartazes dos festivais da cidade em anos anteriores. As pequenas cidades da Europa muitas vezes promovem festivais ao longo do ano, de todas as formas de arte imagináveis, e muitas delas produzem cartazes deslumbrantes, que vencem concursos internacionais de design. San Quirico d’Orcia é dessas.
A refeição foi à altura dos cartazes. E como eu já estava com roupa de ciclista, afinal eu nem tinha outra roupa, a gerente do hotel me deu dois cafés da manhã completos, para eu me alimentar bem. Se na Itália o ciclismo é coisa séria, na Toscana é religião.
Entender como o ciclismo atingiu esse status na Itália tem sido um processo para mim. Em visitas anteriores ao país, nas pousadas e bares eu já notava as frequentes fotos em preto-e-branco de ciclistas competindo. Depois de bastante tempo aprendi que quase sempre as fotos são de Fausto Coppi e Gino Bartali, dois grandes campeões e rivais. Mais tempo ainda se passou até que eu ficasse sabendo do papel importante que Bartali desempenhou na Segunda Guerra: com seu país no auge do fascismo, Bartali atravessava o país transportando documentos falsificados dentro dos tubos da sua bicicleta. Os documentos enganavam os fascistas e salvaram a vida de dezenas, ou talvez centenas, de judeus do país. O excelente livro “O Leão da Toscana”, de Ali McConnon, conta esta história.
Saí sozinho do hotel e rapidamente estava de volta à estrada. Precisei voltar quase 10 quilômetros para retomar a rota da prova de onde eu tinha saído, e acabei passando de novo por San Quirico.
Eu estava ansioso para ver Siena novamente. Em 2018 nasceram meus dois filhos gêmeos, um menino e uma menina, e esta quase ganhou o nome de Siena. Ficou sendo Aurora. E hoje, eu entre a aurora e Siena teria um deleite completo nas Strade Bianche, as Estradas Brancas da Toscana.
Aquelas imagens de cartão postal com colinas verdes, uma estrada alva serpenteando os vales cercada de ciprestes, chegando a um castelo rodeado de vinhas. O resumo é esse. Estando lá, é muito mais. São casas com padronagens em tijolo que só se vêem ali, são aromas de jasmim e outras flores que nascem no mato e na vilas. São subidas duríssimas de se fazer, curtas mas empinadas, seguidas de descidas delirantes no cascalho mais perfeito que se pode imaginar.
O piso é tão ideal para a prática do que chamamos de gravel biking que ali tem rotas oficiais, demarcadas por placas do governo. A temporada estava apenas começando, mas já se viam alguns grupos de ciclistas. Eu continuava a passar por peregrinos a pé, eles em geral caminhando no sentido oposto ao meu, especialmente depois que passei por Roma. A verdade é que o roteiro do Italy Divide é bastante inspirado na Via Francígena, caminho milenar de peregrinação entre a Inglaterra e o sul da Itália. Essas estradas percorridas há dezenas de séculos terminam por ficar muito sólidas, então mesmo elas sendo de cascalho não é comum ver valetas e erosões por ali.
Às 10:45 da manhã eu estava em Buonconvento, onde parei para um café em um bar chamado Amici di Campriano. Buonconvento, assim como boa parte do roteiro do dia, é trajeto da prova mais linda do calendário do ciclismo profissional: a Strade Bianche. O único motivo para continuar pedalando era saber que pra frente eu ainda veria mais coisas boas. Comi uma salada de frutas frescas, enchi as garrafas de água e parti com o dia já bem quente.
O caminho para Siena alternou trechos de cascalho e de asfalto. O ciclismo de longa distância, se muito resumido, gira em torno das preocupações de um bebê: em essência é sobre comer, beber, fazer xixi, cocô e dormir. Com alguns quilômetros percorridos em minha carreira esportiva, agora eu equacionava tudo isso um pouco melhor, inclusive a parte mais imprevisível que é a intestinal. Porém, naquele meio-dia ensolarado, o urubu bicou cada vez mais forte em uma estrada ainda vazia. A duras penas consegui chegar em um posto de gasolina deserto. Torci para que o banheiro não estivesse trancado. O banheiro estava trancado. Nosso sistema nervoso é disposto de maneira tal que, numa situação como aquela, o ventre, assim como o proverbial foguete, não daria mais ré. Ele já contava com o fato consumado. Ora, o posto não tinha mais ninguém, e com minha vivência àquela altura eu seria capaz de defecar com tranquilidade mesmo diante do Sumo Pontífice. Mas foi bem mais tranquilo que isso: havia um belo campo atrás do posto, com gramíneas a uns 80cm de altura. O vital pacote de lenço umedecido me acompanhou e, graças a ele, saí refrescado e leve para tocar a chalana em frente.
No asfalto se liam os nomes dos grandes ciclistas: Pogacar, van der Poel, e mesmo o falecido e mítico Marco Pantani. Na Europa os fãs “grafitam” as estradas antes das provas importantes, e essa marcação me deu a certeza de que eu entrava em Siena pelo mesmo caminho da Strade Bianche, apenas a um terço da velocidade dos profissionais. Até porque a minha única pressa era de apreciar o entorno.
Chegar em Siena nunca foi fácil para mim. Na primeira tentativa fomos em família, ainda apenas Stefania, Olivia e eu. Não reservamos hotel e a cidade estava lotada. Acabamos nem visitando o centro histórico. Na segunda foi a mesma coisa e passamos um susto com nossos filhos Filippo e Aurora ainda na barriga da mãe. Compreendemos o conceito de “Città d’Arte” na Itália: é isso mesmo, são cidades de arte, que são elas mesmas arte, e por isso todo mundo quer ficar lá. Consequentemente, se você quiser se hospedar numa Città d’Arte, não vá como um biruta — melhor fazer reserva em alguma pousada com bastante antecedência. Na terceira tentativa nem tentamos dormir em Siena, escolhemos passar o dia lá e dormir em Montalcino. Eram as semanas de véspera do Palio di Siena, famosa e brutal corrida de cavalos que acontece na deslumbrante praça central da cidade. As “contrade”, ou seja, “bairros”, ou melhor ainda, “times” do Palio, tinham suas bandeiras estendidas por toda a cidade, cada uma das 17 contrade com o nome de um animal mitológico ou não. As contrade têm sedes, e passamos por uma delas que estava aberta a visitação. Tambores medievais com ritmos primitivos para nossos ouvidos suingados de brasileiro, e grafismos simultaneamente antiquíssimos e futuristas representando os bichos. Acima de tudo uma paixão insana pela contrada de cada um, numa relação que faz o amor do Brasileiro por seu time de futebol parecer algo tépido e racional. Siena foi amor à terceira vista.
A quarta chegada, esta, foi maravilhosa também, e muito especial. Transbordando endorfina e varado de fome, parei em uma lanchonete antes mesmo de chegar à Piazza del Campo que eu sonhava havia dias, meses. Não me lembro mais o que comi, provavelmente um panino, mas me lembro da simpatia da atendente, e que para cada pedido meu ela respondia: “Vai!”. Era a primeira vez na prova que eu ouvia essa gíria muito toscana e um clássico da cidade onde moramos, Lucca.
Fui para a Piazza del Campo. Uma praça com a forma aproximada de um casco de cavalo, em uma suave descida que quase a transforma em uma arquibancada para que os presentes vejam melhor o Palazzo Comunale e a Torre della Mangia. Duas vezes por ano aquele lugar se transforma em um estádio equestre, as ruas do perímetro cobertas de terra com duas curvas de menos de 90 graus, onde algumas dezenas de cavalos, e alguns cavaleiros, viram suas vidas acabar. Um ritual insano, cruel com homens e animais, mas de alguma forma e por um caminho extremamente tortuoso, fascinante. A verdade é que eu ainda sei muito pouco sobre tudo que envolve o Palio. Mas continuo aprendendo.
Fiquei talvez 20 ou 30 minutos na Piazza del Campo. Deitei um pouco no chão ao lado da bicicleta, absorvendo os raios de sol que caem na mesma geometria da praça. Uma barraca vendia souvenirs, comprei um bordado da cidade — eu vinha colecionando esses bordados desde a largada, o mais bonito era um do Vesúvio. Pedi para um casal fazer fotos minhas para sempre lembrar daquela realização e daquele momento de saúde e alegria.
O próximo grande objetivo agora era Florença. Eu não entrava nesta tarde com grandes expectativas, mas isso era porque eu não me lembrava que passaria pelo Chianti, uma espécie de serra de colinas muito famosa pelos seus vinhos. Confesso que eu não me lembro mais das subidas do Chianti: me lembro sim de entrar em duas ou três cidadezinhas bastante charmosas como Radda in Chianti e Greve in Chianti. Lembro de ver muitas coisas sobre bicicletas nas lojas por onde passava. Um pôr do sol eloquente no mato e o anoitecer atravessando a Piazza de Greve in Chianti.
Eram mais de 10 da noite quando cheguei à pequena cidade de Impruneta. Mais uma vez eu tinha recebido a dica de pouso de outos participantes, neste caso do Francesco e do Ian. Ali eu estava a apenas 20 ou 30km de Florença, e seria muito mais fácil encontrar onde dormir. A cidade já estava deserta e sonolenta. Encontrei uma pizzaria quase fechando, apenas o dono e seu amigo bebendo a saideira no balcão. Aquele chope me hipnotizou de modo tal que esqueci tudo o que eu precisava fazer: perguntei ao dono se não teria um daquele para mim. Compreendendo meu estado físico e espiritual só de conferir o meu semblante, o dono alegremente me trouxe um chope dos grandes. Meio copo mais tarde consegui perguntar se ele indicaria algum hotel e pousada. Ele: “Ma certo, da Giuseppe!”. Desembainhou o celular, trocou meia dúzia de palavras, desligou, apontou com o dedo uma construção do lado oposto da praça e me disse: é ali, “Vai!”. E nem me cobrou pelo chope.
Dia 6: Impruneta — Madonna dei Fornelli
O senhor Giuseppe era a serenidade em pessoa. Seu hotel não era luxuoso, mas era bem cuidado e se notava na decoração um gosto por cultivar memórias. Dormi como um anjo, ou como alguém que já pedalava havia 5 dias, e acordei animado com a perspectiva de ver Florença e, quem sabe, Bolonha naquele mesmo dia.
Giuseppe me preparou um café simples bem cedo, o que me permitiu estar na bicicleta sem muita delonga. Impruneta, eu percebia agora, era quase um subúrbio de Florença, um degrau abaixo do Chianti e um degrau acima da capital. Peguei muitas descidas em ruas estreitas com o Sol ainda baixo, passando por casas lindas.
Ainda com a manhã fria enxerguei ao longe os telhados de Florença. O domo inconfundível da catedral, criado por Filippo Brunelleschi, xará do meu filho — ou talvez o contrário. A prova chega em Florença pelo caminho perfeito, passando antes na Piazzale Michelangelo. É interessante que os portugueses chamem Michelangelo de Miguel-Ângelo, ou seja, ficam no meio do caminho, quando poderiam chamá-lo logo de Miguel Anjo. Em todo caso o lugar é um mirante projetado por ele mesmo, do lado sul do rio Arno e de onde se vê o rio, a Ponte Velha com suas lojas, as pontes novas, e toda a cidade. No fundo, morros que são a entrada para os Apeninos.
Hesitando em deixar para trás mais um lugar perfeito, desci rumo à cidade. São algumas curvas de nível e logo estamos na beira do Arno. Tendo vivido em Lucca, a pouco mais de uma hora de Florença, já estive nesse lugar algumas vezes, inclusive de bicicleta. É um privilégio a sensação de familiaridade com lugares muito distantes de onde nascemos. Voltar. Eu sentia essas coisas enquanto virava à esquerda rumo à Ponte Velha, il Ponte Vecchio. Algo que me fascina é como certos substantivos são masculinos em certas línguas e femininos em outras. Ponte em italiano é masculino. Fiore, flor em italiano é masculino, o que para mim é estranho e bonito. Aqui eu sabia o caminho de cor, pelo menos até a Catedral.
Aqui entramos no além-das-palavras.
Dei uma volta em torno da Catedral, lenta e apreciativa, e saí meio perdido buscando o norte da cidade. Pensei nos planos de ficar ali perto, em Lucca, mais uma semana com a família depois do Italy Divide. Assim senti menos dor por sair de Florença.
Agora a próxima cidade grande no roteiro era Bologna. Das cidades grandes mesmo na prova, Bologna era a única que eu nunca tinha visitado. Mas antes, era necessário atravessar os Apeninos, os mesmos Apeninos que foram assunto de aviso do Giácomo minutos antes da largada: não atravessar à noite, vocês não são o Jay Petervary. Bom, pelo menos ainda era de manhã.
A subidaiada começou ainda dentro de Florença. A princípio passei por bairros chiques e arborizados até mesmo para os padrões toscanos. Lá pelas tantas o asfalto acabou e a subida inclinou um pouco. Em determinado momento o caminho virou uma trilha, e cada vez mais íngreme.
Comecei a passar por muita gente caminhando, em ambos os sentidos. Vários tinham hastes sofisticadas para trekking, como se fossem cajados futurísticos. Como o meu progresso naquela trilha era lento, as pessoas me perguntavam sobre a placa na minha bicicleta, e alguns sabiam da prova e tinham visto outros participantes passando antes de mim.
O que eu não sabia é que estava entrando em um caminho famoso, parte da via Francígena, chamado Via degli Dei. Caminho dos Deuses. O caminho era uma mistura de trilhas, gramados sem demarcação, grandes pedras. Em vários momentos não havia modo de pedalar, e empurrar a bike já era melhor do que carregar tudo nos ombros. O caminho era lindo, mas ia se configurando como um dos mais duros do percurso até então.
Depois de bastante tempo cheguei a um platô gramado, com algumas antenas destoando do visual divino. Já devia ser meio-dia. Alguns casais e famílias faziam piqueniques. Não fiquei muito tempo ali, já respeitando o que poderia estar à minha espera.
A descida foi pior que a subida. Agora era tudo muito técnico e enlameado, com alguns trechos planos também bastante encharcados. Pedalar no lamaçal era no mínimo pouco inteligente: a bicicleta ainda precisaria durar mais uns 600 quilômetros. Empurrar a bike nos trechos piores também ia entupir tudo com uma lama fina perfeita para destruir corrente, coroa e cassette. Terminei fazendo uma pesada musculação, carregando tudo nos ombros.
A cabeça foi ficando ruim. Nesses momentos, se você conhece o caminho, pode decidir melhor se descansa logo ou se força um pouco para chegar antes a um lugar mais tranquilo. Eu não conhecia o caminho e fui tocando. A certa altura entrei em uma descida muito séria, como raramente se encontra no Brasil: várias curvas de nível tangenciando uma montanha íngreme. Tudo na terra e lama, com pedras. Era espetacular, mas eu estava com o cérebro frito. A solução foi ir com bastante calma, sem forçar nada para não tomar um capote, e saber que alguma hora aquilo ia acabar.
Depois de muito tempo descendo, cheguei a um plano, e o caminho parecia se juntar a algo mais parecido com uma estradinha do que uma trilha. Pela primeira vez na prova, eu estava sem água. Em provas assim eu eu costumo andar com duas caramanholas de 900ml e mais uma ou duas garrafas de 500ml nos bolsos, mais para o caso de ficar a pé e precisar empurrar a bicicleta mais de 10km, algo que já aconteceu. Do meu lado esquerdo vi a primeira casa em muito tempo. Bati palmas para tentar chamar alguém. Depois de longos segundos, um homem mais ou menos da minha idade olhou através de um vidro, e saiu relutante. Pedi que ele enchesse minhas garrafas, pois vinha lá do alto. Ele apontou para a estrada e falou que 100 metros à esquerda tinha um bar, mas ainda assim entrou e me trouxe uma jarra de água.
Meu caminho era à direita, e segui por ali. Foi passando o tempo, eu não via nenhum comércio, e já passava muito da hora do almoço. Pelo mapa eu via que logo teria que encarar uma serra muito mais alta do que essa que tinha me tirado do eixo há pouco. Eu estava em um vale profundo. Vi que havia uma cidadezinha um pouco fora da rota, mas era melhor ir para lá e achar um restaurante logo. O problema é que todo vale tem um rio, mas nem todo rio tem ponte. Eu acabei em um mato, tentando achar um jeito de atravessar o caudaloso rio. No meio do mato, vi um senhor de pelo menos 85 anos de idade andando sozinho. Achei que estivesse alucinando, mas eu vinha dormindo bem, e a única substância entorpecente que eu consumira nas últimas horas era um pouco de Nutella, ainda assim a contragosto porque era o recheio de um croissant. Pedi alguma dica ao senhor sobre como atravessar aquele rio. Recebi a garantia que a algumas centenas de metros haveria uma ponte. Segui suas dicas e de fato havia uma ponte onde cabiam caminhões em duas mãos, e nada mais era do que o caminho oficial da prova.
Encontrei um restaurante bem convidativo, e agora já não me surpreendi mais ao ver 4 participantes da prova almoçando ali. Na verdade o restaurante era de um lado da estrada, e as mesas do outro lado da estrada, em um gramado com mesas cobertas. Não sei se algum dia vou deixar de me surpreender com a qualidade dos restaurantes que encontramos em lugares que parecem o fim do mundo na Itália.
Pedi um prato de massa ao molho de tomate, que por sinal estava delicioso, e fui ver quem eram os ciclistas. Esses eu não conhecia ainda. Eram 3 homens e uma moça. Um deles era italiano, dois eram canadenses e a moça, alemã. Cheguei ali mentalmente tão atordoado que, sem dúvida, os assustei. E pior, eles já estavam tão assustados com o que viveram desde Florença que 3 deles anunciaram que iriam abandonar o evento ali mesmo, e iam seguir pelo asfalto até a chegada. O italiano não estava pedalando com eles, e falou que ia seguir.
Segui viagem um pouco preocupado com o resto da Via degli Dei. Ainda em Florença recebi mais uma dica do Francesco e do Ian: se chegasse em Madonna dei Fornelli, antes de Bologna, já teria algum lugar bom para dormir. O objetivo do dia seria esse então.
Saí do vale de San Piero a Seve bem rápido, aproveitando o que havia de plano no dia. A tarde já estava avançada, deviam ser quase 4 horas. Eu via no ciclocomputador que tinha errado o caminho, mas não confiei muito porque alarmes falsos são comuns. Atravessei o portão do que parecia ser um hotel de luxo. Nem pensei muito, talvez fosse apenas mais uma passagem criativa entre tantas. Em 2 minutos cheguei na recepção do hotel, e dois homens saíram de lá bastante confusos. Aí a minha confusão começou. Eles me garantiram que prova nenhuma de bicicleta passava por aí, e que não tinham visto nenhum ciclista nos últimos dias. Acreditei e dei meia-volta.
Conferi meu mapa no computador e não entendia muito bem onde eu tinha que entrar. Decidi usar o mapa de reserva, que estava em um app no meu celular. Ele me apontou para um caminho paralelo. Indo para lá cruzei dois participantes do Leste Europeu em caminho oposto ao que eu ia. Falei com eles que vim de um hotel e que estava errado. Eles deram certeza que estava certo. Isso estava mais comum do que venho narrando, eu já tinha visto e cometido diversos pequenos erros de navegação, rapidamente corrigidos. Toquei no meu caminho e comecei a subida, logo na terra e pedra. Não vi mais nenhum ciclista e as casas começaram a rarear. Na última casa que vi, perguntei para um senhor se eu estava muito longe de Madonna dei Fornelli. Ele: não conheço. Eu: aqui pra frente é tranquilo? Ele: não. Agradeci e segui em frente chorando um pouco por dentro.
A tarde caía e aquele lugar era lindo. O dia inteiro eu atravessava caminhos demarcados com 2 pinceladas de tinta, uma branca e outra vermelha, demarcando a Via degli Dei. Eu observava também que não era um único caminho demarcado assim, e se fosse para a esquerda ou para a direita em um T, era tudo demarcado igual. O cartesianismo não pegou na Itália. Sendo assim, fui tocando e pelo mapa do celular estava tudo certo. Eu só não via uma marca de pneu de bicicleta sequer, o que era muito estranho. Via muitas pegadas, e de fato ia cruzando peregrinos a pé. Mais estranho ainda para um brasileiro, eu estava numa floresta longe de tudo e o sinal do 4G estava bombando. Resolvi recorrer aos amigos do Cascalho Carioca. Pelo celular pedi que eles olhassem com calma o mapa oficial da prova, conferissem o meu ponto, e me situassem se eu estava certo ou errado. Em minutos eles me informaram que eu estava na direção certa, porém fora da rota, ainda seguindo paralelo a ela. Me disseram também que a rota oficial era em uma estrada asfaltada. Enquanto isso, eu já começava a ter que jogar a bicicleta para cima das pedras e escalar os morros atrás delas, rendendo bastante choro e ranger de dentes, além dos belos visuais.
Depois de muito matutar, entendi o que aconteceu. Eu tinha copiado a rota manualmente no Brasil, literalmente redesenhado a rota. Eu conferi e reconferi, isso cerca de um mês antes do evento. Uma semana antes do evento, o Giácomo soltou outra versão da rota, segundo ele com uma alteração apenas. Era aquela: eu errei algo na rota nova que me levou ao hotel, e depois usei a minha primeira rota, que usava a passagem do ano anterior naquele pedaço. Tive que rir, além de chorar, ao me lembrar que o Giácomo disse que mudaria o trajeto ali porque era difícil demais. Realmente. Sorte que no Italy Divide eles não levam a rota a ferro e fogo(“Is not a race!”), porque voltar e refazer o que eu tinha feito diferente parecia até pior do que encarar um pouco mais o perrengue e voltar ao caminho novo mais à frente.
Pena que, pelo caminho antigo, ainda seriam várias horas até eu reencontrar o caminho atual. Mas isso eu não sabia ainda. Só sei que, na altitude, o Sol foi caindo e o frio bateu. Não havia construções por ali, era o lugar mais selvagem do evento até então. Passei por algumas pessoas acampando, cozinhando em seus fogareiros. Mas eu tinha água, tinha comida…então era só seguir em frente. Ao conversar com os peregrinos naquele ponto, eles já sabiam de Madonna dei Fornelli, apesar de nenhum deles acreditar que eu conseguiria chegar lá naquele dia.
Já com a noite escura, cheguei de novo na rota oficial. Ali era terra, era subida e era dureza igual ao que eu tinha passado. Ouvi vozes e vi faróis de bicicleta. Eram os quatro que encontrei no almoço. Eles me confirmaram que o asfalto tinha acabado há pouco, que vinham curtindo mas o caminho até Bologna teria que ser igual ao da prova. Nessa altura eu estava ainda mais pirado do que quando os conheci. Consciente desse fato e precisando de uma companhia humana para dar uma acalmada, literalmente pedi para ir pedalando com eles alguns quilômetros. Eles aceitaram e ainda vieram puxando papo comigo. Eu tentava concatenar respostas com alguma coerência. Me lembro que eles me contaram que não treinaram nada para o Italy Divide, e eu contei que treinei muito para o Italy Divide. Lá pelas tantas eles disseram que iam procurar um lugar mais discreto para armar os bivaques. Achei muito cedo mas não questionei muito, eles poderiam apenas estar dando um perdido no louco. Me despedi e toquei em frente.
Eram mais de dez da noite quando vi que estava chegando próximo a Madonna dei Fornelli. A aproximação da cidade foi muito legal, com gramados para atravessar, caminhos intrigantes. Até ajudou a levantar o astral, porque aquela tinha sido a Etapa Rainha da prova.
Cheguei em um restaurante-pousada quase fechando, para não perder o hábito. O proprietário me falou que estava tudo reservado, mas que uma das reservas ainda não tinha chegado. Jamais saberei se ele estava me assustando, os italianos adoram fazer isso. Só sei que no fim ele me deu um quarto. Eu ia dormir como uma pedra em Madonna dei Fornelli, a Nossa Senhora dos Forninhos.
Dia 7: Madonna dei Fornelli — Sommacampagna
Acordei ainda no escuro e desta vez saí antes do café da manhã. Eu não estava atrasado mas também não podia mais enrolar se quisesse completar a prova no dia seguinte.
Seriam alguns quilômetros de subida no cascalho e depois uns 30km de descida no asfalto até Bolonha. Encontrei os dois austríacos que dormiram no meu hotel na primeira noite. Eles continuavam animados e não falando inglês muito bem.
Um Sol muito vermelho nasceu à minha direita, prenunciando as cores de Bolonha.
Cheguei a Bolonha brocado de fome. As pessoas iam para a escola e para o trabalho. Ainda fazia frio e, a meu lado, sempre uma calçada coberta por uma marquise sustentada por arcos. Tudo era avermelhado. Siena é toda tijolos, uma paleta impossível de tantos tons atijolados. Bologna é assim com o cimento vermelho. Talvez supreenda alguns, mas fica muito bonito.
Parei no primeiro bar que encontrei, chamado Star’s Café. O dono, Luca, é triatleta e foi de enorme simpatia. Compreendendo o buraco no meu estômago, ele fez uma bandeja com seis croissants diferentes, além de um cappuccino gigante, e não quis me cobrar. Felizmente a esta altura da vida eu poderia pagar por aquilo, até mesmo em Euros, o que nem sempre foi o caso. Mas não deixa de ser um gesto bacana alguém te incentivar desta forma. Luca foi a única pessoa com quem interagi em Bologna e ele me fez gostar dali de imediato.
Atravessei Bologna com pressa mas ainda muito curioso. Aqui tinha vivido Umberto Eco. É a capital da Emilia Romagna, famosa por sua comida excelente. Suas construções são diferentes, não há nenhum traço de soberba de cidade linda como Rio, Roma, e ainda assim esta cidade é muito simpática. Como de costume, a rota do Italy Divide propiciou um tour pelos lugares bonitos da cidade. Destaque para a Piazza Maggiore, a Piazza Grande como os locais a chamam. Não é nem nunca vai ser uma Piazza Navona, mas tinha alguma coisa ali e o impacto foi tanto que voltamos com a família quase um mês depois, ficamos uma semana em Bologna, e foi inesquecível. A comida é de outro mundo realmente.
Desde meses antes da largada eu vinha me comunicando com o Samuel Maia, um ciclista brasileiro que também faz longa distância e gravel, entre outras coisas, e mora em Mantova. Eu curtia seus video-relatos no canal BicyclePure do YouTube e nós fomos trocando ideias com o intuito de nos encontrarmos quando eu passasse pela cidade dele. Mantova era outra cidade que eu nunca tinha visitado, e sinceramente não sabia praticamente nada a respeito. Foi com alguma surpresa que, ao contar para as pessoas qual seria meu roteiro, ouvi os primeiros comentários sobre a beleza de Mantova.
O caminho entre Bologna e Mantova trouxe um outro tipo de desafio: era basicamente uma linha reta, plana. Foram cento e muitos quilômetros, a maioria deles por uma larga ciclovia elevada de cascalho. Não era fácil acreditar na extensão daquele caminho. Por estar mais alto que o entorno, dava para ver enormes plantações e um horizonte sem fim. Mas, com o sono atrasado, o tempo demorou a passar. O dia anterior ainda pesava, mais na mente do que nas pernas. Por sorte não havia vento contra, e assim fui rendendo bem apesar da cabeça ainda em recuperação.
A alegria voltou quando cheguei perto de Mantova e o Samuel me encontrou. Foi uma recepção muito calorosa que ele me estendeu, com um largo sorriso, um abraço e ainda me conduzindo em direção à cidade dele.
Almoçamos na praça central de Mantova, que é de fato maravilhosa. O Samuel me introduziu ao Riso alla Pilota, prato tradicional Mantovano: uma espécie de risoto com carne de porco moída. Prato simples mas delicioso e perfeito para dar um combustível. O astral era de cidade pequena e o Samuel parecia conhecer muita gente. Eu acho os italianos em geral muito gente fina, em especial com quem como eu tenta falar a língua deles. Ali não foi diferente.
Depois seguimos para um rápido tour da cidade. O lago com o Palácio Ducal é uma visão única, ainda mais com o Sol caindo como estava. Ainda encontramos alguns amigos de bike do Samuel que, ao ouvir de onde eu vinha e para onde ia, me deram alguns sachês de gel de presente. Galera muito acolhedora, obrigado pelo carinho!
Para arrematar, o Samuel ainda fez por mim algo que eu até tentava fazer mas não conseguia: reservar uma pousada para aquela noite. Eu não tinha entendido como fazer ligações do meu chip brasileiro para a Itália. O Samuel descolou um pouso e fez a reserva para mim em segundos. Foi bom continuar o caminho já sabendo onde eu ia ficar, fui ainda mais relaxado.
Um abraço e um até a próxima ao Samuel, com muita gratidão. Agora era seguir em direção a Verona, já sabendo que mais uma vez eu ia dormir nas cercanias da cidade grande, o que é muito melhor. Eu queria muito entrar em Verona de novo, um lugar de sonho. Mas esse percurso antes de Verona foi melhor ainda, foi o próprio sonho acordado.
Eu filmei pouca coisa porque eu queria mesmo era ver tudo com meus olhos. E vi. Atravessei bosques, acompanhei a beira de um rio com casas construídas sobre cascatas, vi cisnes gigantescos, gramados, trilhas fechadas, cidades medievais e renascentistas com o clima que só o Vêneto tem, e para mim ainda é impossível explicar. A única parte da prova comparável com esta foi a Toscana.
Se eu comecei o dia ainda com a carga de uma véspera muito dura, eu chegava a Sommacampagna com a alma lavada. Não cheguei muito tarde, ainda fui recepcionado por um antigo campeão italiano de boxe e sua esposa, donos da acolhedora pousada em que pernoitei. No melhor quarto da viagem, com todas as roupas estendidas pelo chão, apaguei feliz da vida.
Dia 8: Sommacampagna—Torbole
Acordei às 4 da manhã. Elena, a dona da pousada, serenamente tinha me dito que estaria acordada e com um café da manhã pronto para mim às 4:30. Era um super café, como se todos os hóspedes da pousada fossem estar ali àquela hora.
Não procurei saber muito, mas pareceu que ela tem muita experiência em ajudar atletas — não que eu seja um, deixemos isso claro, e nem que minha titulação no meio esportivo traga algum benefício para mim, nem muito menos para o universo que agora estão dizendo ser muito mais velho ou rápido em gestar galáxias do que vínhamos acreditando. Primeiro, e agora volto para a dona da pousada, pela atitude serena e placidamente entusiástica ao saber da minha rota. Segundo, pelo apoio prático. Um exemplo: sabendo que eu atravessaria o Monte Baldo, ela me trouxe um resumo da previsão do tempo por lá, com sugestões de melhores horários para subir. Na verdade, eu falei com ela chamando o Monte Baldo de Monte Ubaldo, e só me dei conta do equívoco muito mais tarde, quase no pé da montanha.
Saí mais uma vez logo antes do Sol nascer. Se tudo desse certo, aquele seria o último nascer do Sol do meu Italy Divide. Admito que não foi tão belo quanto o que nasceu perto de Bolonha, mas foi muito bonito. Me lembro de uma longa descida no asfalto, depois uma casa aqui e ali, uma fábrica, um quarteirão, e um cinema.
Um cinema. Em quase 1300km, atravessando cidades grandes da Itália, aquele era o primeiro cinema que eu via. Ele era pequeno, simples. As letras C-I-N-E-M-A imitavam as fitas, os rolos de filme. Me ocorreu que minha avó Adriana chamava filmes de fita. Me lembrei de assistir Cinema Paradiso no cinema com o meu pai, eu com 14 anos, ele recém separado da minha mãe. Um dia tão triste, e ao mesmo tempo inesquecível. O amor dos meus pais acabando, e eu entrando na idade do romance, de amar. O final daquele filme, o final do cinema que hoje é mais um aplicativo, o final desta minha viagem, da minha juventude também. Eu já estava bem mais velho do que meu pai era naquele dia. Esse nó todo.
Fui chorando em frente. Ainda com os olhos marejados parei em um café, onde estava um ciclista da prova, o holandês Jaap. Nós tínhamos nos cruzado diversas vezes ao longo da prova, e tomado um café juntos aqui e ali. Ele era simpático mas muito discreto e silencioso. Balbuciei alguma coisa para ele, que pareceu entender meu estado.
Inacreditavelmente, eu tinha chegado em Verona de bicicleta. Doideira. Que cidade bonita, com um tamanho humano. Como disse nossa querida amiga Rafa: uma Roma em miniatura. Com certeza isso e muito mais também, afinal ali é o Vêneto, que a seu modo foi uma grande potência no passado, e tem uma cultura toda própria, com os olhos repuxados do Oriente.
Mesmo pensando no meu tempo curto, me permiti um giro pelos lugares mais bonitos do Centro, a Piazza delle Erbe, a casa da Julieta, a via Mazzini. Outro lugar pra se jogar a bicicleta no chão e morar pra sempre.
Toquei em frente. A partir dali a prova sobe de verdade, com os dois topos mais altos de toda a viagem. A manhã toda foi de subida, atravessando um castelo e depois no cascalho. Quando dei por mim estava viajando em morros gramados, nem estrada tinha mais, marcação, nada. Era só seguir a linha no mapa.
Fui atravessando vilarejos até chegar em uma cidadezinha: Cerro Veronese. Já eram umas 11 da manhã e a fome estava grande. Parei em um restaurante que estava começando a abrir. O dono, que deveria ter a minha idade, me recebeu com cortesia. Perguntei o nome dele: Filippo. Eu disse: o nome do meu filho. Ele: seu filho se chama Felipe, como no Brasil? Eu: ele se chama Filippo, como na Itália. Mesmo nada estando preparado para servir alguém, ele improvisou uma salada ótima e se recusou a receber pagamento. Um dia a gente volta lá e paga em dobro.
Ainda tinha subida, tanto que comecei a ver estações de esqui, com teleféricos já vazios depois do fim da temporada. Em anos passados, a prova ali incluiu neve. Eu tinha medo disso e tentei ir preparado, com muita roupa, meia e luvas apropriadas. Mas a pouca neve que vi era apenas o último resto do inverno. Pedalei por muito cascalho lá no topo do que, mais tarde, aprendi que se chama Lessinia.
Quase no topo dessa primeira grande subida do dia, fui ultrapassado pelo Francesco e pelo Ian. Tinha uns 2 ou 3 dias que eu não os encontrava, mas sabia que eles estavam perto quando conferia o mapa da prova. Eles acordavam mais tarde que eu e pedalavam mais rápido. Assim, eles me passaram mais uma vez. Alguns segundos depois de ser ultrapassado, algo estranho no meu pedal esquerdo: parecia que ele estava indo para a esquerda. Mais algumas pedaladas e o pedal estava solto da bike, preso no pedivela e na minha sapatilha. Gritei pelo Francesco e Ian, quem sabe eles saberiam me ajudar melhor. No mascar do cascalho, eles já não me ouviram.
Saí da bike atrapalhado com o pedal preso em mim. Tirei a sapatilha do pé, e só assim tirei a sapatilha do pedal. Agora teria que consertar aquele pedivela solto. Eu estava calmo, apesar daquilo nunca ter acontecido comigo antes. Encaixei o pedivela e apertei os parafusos. Eu sentia que faltava alguma coisa, o encaixe não era perfeito, mas parecia que dava pra seguir daquele jeito. Torci para dar certo, subi na bike e toquei marcha.
A descida da Lessínia foi um mergulho. Entre terra e asfalto, perdemos 1500m de altitude em uns 15km. A única rampa assim no Brasil é a Paraty-Cunha, que eu só fiz subindo. Chega a cansar, porque exige concentração. Ao final eu já estava em outra região da Itália: o Trento.
Comi alguma coisa em Sabbionara, no vale que separa as duas subidas do último dia. Não vi charme ali, e já não estavam servindo refeições naquele meio de tarde. O tempo estava nublado, ainda que não estivesse frio.
Preocupado em não estar no topo do Monte Baldo à noite, não enrolei. Subi na bike e entrei na cidade de Avio, essa mais charmosa. O Trento já se parece um pouco com a Áustria, mesmo ali na ponta sul da região. Avio era uma subida. Olhei por cima dos telhados da cidade e fiquei com medo: as montanhas eram gigantescas. Pareciam uma parede intransponível. Tinha que ter um jeito e era simples: seguir o mapa e encarar. Fui com medo mesmo, e a estrada achava um caminho sem grande inclinação, uma fenda na serra. E assim foi sendo, no asfalto, uma subida muito longa cuja única comparação na minha experiência é a subida para Itatiaia. Alguma corrida recente passou por ali: vi os nomes dos grandes ciclistas pichados no chão. Era lindo mas agora eu tinha pressa. Tanta pressa que meu pedivela saiu de novo. Não tive adrenalina para nada: apertei os parafusos e seja o que Deus quiser. Só na oficina no Brasil me ensinaram que uma pequena lingueta de plástico tinha sido esmigalhada com o tempo, ela dava a trava certa no pedivela, e eu rodei muito tempo ao sabor da sorte.
Depois de horas nessa subida, agora pensando mais em não passar frio do que em aproveitar a grande montanha, cheguei no “Passo”: o topo. Um longo platô estica aquela altitude por vários quilômetros, aquilo era coisa de filme, com pastos para todos os lados. O Sol já estava baixinho, e agora quem ia descer era eu. Primeiro por uma beira de despenhadeiro bem perigosa, ainda que bonita. Depois voltando ao asfalto, por uma estrada larga e perfeita. Ali eu andei rápido e passei um pouco de frio.
O passeio estava acabando. Depois de longas horas atravessando o Monte Baldo, eu estava mais próximo do Lago de Garda, a linha de chegada do Italy Divide. Já era noite e começou a chover fino. Um misto de alegria, medo de algo dar errado bem no fim, e aquele vazio no peito de expedição concluída. Ainda tinha uns 20km pela frente, por cidadezinhas, plantações, ciclovias, descendo e descendo gradualmente. Só esse final de prova era um pedal e tanto, seria inesquecível se fosse só aquilo.
Já eram quase 22h quando cheguei a Torbole. Cabeça e corpo cansados, me perdi um pouco na cidade. Eu via que a chegada estava perto, mas não encontrava nada sinalizando a prova. Dei voltas em uma rotatória cheia de bares abertos naquele sábado. Confesso que, nessa confusão, aquela euforia de uma chegada triunfal, que eu sabia que não aconteceria, se esvaiu de vez. Depois de mais alguns instantes, entendi onde devia entrar, e cheguei.
Epílogo
Alguns segundos depois de eu entrar no espaço dos Finishers, fui recebido pelo Schizzo (“Esguicho”) com enorme carinho. Segundo ele, eu fui a primeira pessoa a vir do Brasil para o evento em todos os anos. Ele tirou muitas fotos minhas, me disse que eu podia pegar quantas camisetas de finisher quisesse, e me deu dois pares de meias.
O primeiro participante a concluir o evento, Jochen Böhringer da Alemanha, chegou em 3 dias e 20 horas.
Cheguei com poucas horas de diferença do Massimo, Alex, Francesco, Ian, Japp e dos austríacos do primeiro hotel.
Meu vizinho de quarto em Pompeia, Marin, estava entre os 3 primeiros até o quilômetro 800 aproximadamente, quando abandonou. Eu não sei o motivo até hoje. Depois ele chegou em quarto lugar na Transcontinental Race, e venceu a Atlas Mountain Race ainda em 2022.
Azubuike ficou em Siena.
A Via degli Dei foi inteira retirada da prova em 2023.
Gary Johnson e Nelson Carter, salvo engano, concluíram o percurso depois de algumas semanas.
A dupla pai e filho Tom e Oliver concluiu a prova.
O inglês Webster concluiu a prova.
O trio canadense-alemão-italiano que encontrei no vale da Via degli Dei chegou a Torbole, aparentemente por um caminho de asfalto, e é marcado como finisher na tabela do evento.
Encontrei o criador da prova, Giacomo, no dia seguinte e dei um grande abraço nele.
Voltei a Roma, encontrei minha família e viajamos mais um mês pela Itália, um privilégio inesquecível.
Penso em fazer o French Divide em 2024. São 2275 quilômetros com mais de 32000 metros de altimetria.
In 2022 I finished 27 books. Of these, 14 were audiobooks. It was a nice year for reading in the languages I am learning: 5 books were in Italian and 3 were in French. Three audiobooks were in Italian, and I can now listen to books of average sophistication in that language.
Idioms aside, this year was once again not the greatest in terms of books for me. As highlights I’ll mention:
Transpatagônia, Highlands, and Transmongólia by Guilherme Cavallari. These are 3 different books, each one about a multi-month expedition undertaken by the author in recent years. They are only available in Portuguese . What makes these books stand out in their genre is probably borne out of the fact that Cavallari has always been a serious reader as well as a traveler. He can write, and he goes beyond day-to-day descriptions by interweaving historical and geographical details into the narrative. In “Highlands” Cavallari is going through major personal challenges, with sickness and death in his family, and he touchingly describes his emotions along the journey.
Dog Man by Martin Buser. Martin Buser is a musher: someone who raises, trains, and races sled dogs. In this memoir he chronicles a budding love for mushing in his youth in Switzerland, his move to Alaska with the dream of winning the Iditarod, and his life’s path to becoming a legend of the sport and a true Alaskan.
I keep track of my reading on Goodreads, will be happy to friend you there.
o retorno da nossa parceria em 2022 foi de 8,95%, já descontadas todas as despesas. A cota encerrou o ano a R$1,0578312.
Nossa parceria superou em 4,26 pontos percentuais o índice Bovespa, que rendeu 4,69% no ano.
Estreamos no modelo de Clube em 25 de abril deste ano. Desde aquele dia nosso retorno foi de 5,78%, e o retorno do índice Bovespa foi de –0.81%.
Ano
Nossa Parceria
Ibovespa
2017
29,44%
26,86%
2018
11,51%
15,03%
2019
59,25%
31,58%
2020
–9,23%
2,92%
2021
5,21%
–11,92%
2022
8,95%
4,69%
Acumulado
139,17%
82,23%
O objetivo declarado da nossa parceria é superar o índice Bovespa ao longo de décadas. Outros objetivos acabam ficando implícitos: superar a inflação e superar a taxa base de juros do Brasil. Por este último ângulo nosso resultado não impressiona, já que a SELIC acumulada no ano foi de 12,39%. A bem da verdade, mesmo nos últimos três anos, nós perdemos para a SELIC: 4,05% a 20,60%.
Terminamos 2022 tendo visto o que acredito ser um número alto de boas oportunidades de investimento. Um bom ano pode trazer uma ideia apenas — em 2022 considerei pelo menos 15 ideias. Lembro de 3 ou 4 meses em 2020 com muitas oportunidades, mais e melhores do que este ano. A diferença é que em 2022 as oportunidades ficaram disponíveis o ano inteiro, e continuam disponíveis.
Nossa carteira atual tem 9 empresas, um recorde: Metalúrgica Gerdau e Mahle Metal Leve na metalurgia (41,54% do nosso patrimônio), C&A, Grupo Grazziotin, Pão de Açúcar e Mobly no varejo (22,18% do nosso patrimônio), Cogna (educação), Cyrela (construtora) e Multilaser (importação/indústria).
A ênfase na metalurgia ficou ainda mais pronunciada graças ao aumento de cotação das nossas duas empresas neste último semestre. É interessante observar que, mesmo elas tendo aumentado de preço, hoje podemos comprar mais Mahle a 10 vezes seu fluxo de caixa livre médio dos últimos 10 anos e Metalúrgica Gerdau a módicas 2,63 vezes seu fluxo de caixa livre médio dos últimos 10 anos. Imagine a oportunidade de desfrutar de todos os resultados da Metalúrgica Gerdau de hoje até o fim dos tempos pelo preço de pouco mais de 2 anos e meio dos seus resultados na década mais recente.
Gostaria de mencionar o grupo da C&A, Mobly e Multilaser, uma subcarteira com caráter mais especulativo, até mesmo pelo pequeno número de anos com informação disponível. As três são IPOs recentes, feitos entre novembro de 2019 e julho de 2021. Desde então suas cotações caíram entre 68,95% e 88,64%. O fato de algo cair muito de preço não garante muita coisa, mas tendo comparado o que pagaríamos por estas empresas com seus balanços, resultados e perspectivas, decidimos adquirir participações entre 4 e 7% do nosso patrimônio em cada uma delas, e hoje o grupo corresponde a 16,37% do nosso patrimônio.
As parceiras e parceiros que se lembram da nossa carteira do fim de 2021 vão notar a ausência da Cielo desde que formalizamos o Clube. A regulação da CVM inclui uma regra peculiar: os Clubes não podem investir uma quantia significativa em empresas cujos controladores são a corretora usada pelo Clube, ou mesmo controladores da corretora usada pelo Clube. Explicando melhor: nossa corretora Ágora pertence ao Bradesco, que é controlador (junto com o Banco do Brasil) da Cielo. Isso nos impediu de manter a posição na Cielo. Contabilizo isso como um erro meu: a Cielo subiu 140% de cotação este ano, e não pudemos colher todos esses frutos.
Já que entramos na seção de erros do ano, é inegável que o próprio fato de estarmos na renda variável pode ser considerado um erro, quando a renda fixa deu resultados melhores. O ano aconteceu de uma forma que não trouxe muita clareza sobre erros e acertos específicos na carteira escolhida. O que observamos foram resultados operacionais melhores de forma geral. As cotações oscilaram bastante e chegaram mais altas para a metalurgia do que para o restante, mesmo tendo passado boa parte do ano bem diferentes. Seguimos acompanhando.
À medida em que mais empresas verdadeiramente superiores fiquem disponíveis a bom preço, o que sabemos ser raro, ficaremos satisfeitos em voltar a ter somente 5 ou 6 empresas na carteira. As oportunidades para investidores pacientes continuam sendo muitas. É certo que no futuro as boas oportunidades vão passar por períodos de escassez, e fiquem seguros que, quando for o caso, vou compartilhar o meu ponto de vista.
Desejo a vocês, suas famílias e amigos um maravilhoso 2023.
No final do post sobre o Bikingman 2022 eu escrevo um pouco sobre minha decisão de participar do Italy Divide. Aqui vou fazer anotações esporádicas sobre minha preparação.
Em dezembro comecei a ser treinado pelo Nuno Lopes. Ele tem uma bela vivência no ciclismo de longa distância, completou a Trans Am e é conselheiro do Randonneurs Brasil. Mal arranhamos a superfície, mas gosto muito dele, me divirto e ele entende do assunto.
Fiz uma primeira consulta com o Rafael Brasilia, conhecido nutricionista de ciclismo. Desde então perdi uns 2 ou 3 kgs, dos 84 passei pra 82 ou 81 (cheguei a pesar 80.0 na balança logo após um pedal…sei que não vale mas foi marcante). Tenho me alimentado de maneira bem diferente do habitual. Não é fácil mas o resultado aparece aos poucos, e a construção de novos comportamentos leva bem mais de 2 meses.
Estou trocando de bicicleta. Minha gravel atual, uma Topstone de carbono, não comporta pneus mais largos que 38, talvez 40mm em rodas 700C. Na Topstone eu venho usando uma roda 650b, e assim pneus 48mm, mas pneus para rodas 650 são impossíveis de encontrar em lojas. Depois do rasgo no pneu durante o Bikingman, optei por essa troca (e é claro que nunca mais vou ter esse problema com o pneu).
Comprei alguns equipamentos para o Italy Divide, e outros estão a caminho. A melhor compra até agora: um farol Ravemen 1600 lumens. Fiz um brevet de 1000km que pensei como preparação. E que preparação: choveu o tempo todo, as estradas ficaram bem perigosas no final, perto de Mariana e Ouro Preto. Fiz 950km e abandonei, com as solas dos pés bastante machucadas pela água e pensando na minha segurança naquela estrada.
Meu objetivo para o Italy Divide é completar dentro do tempo, aproveitando ao máximo o trajeto que promete ser muito difícil. Até agora eu não sei qual o tempo máximo permitido para se completar o Italy Divide. O site e o manual da prova parecem bastante vagos a respeito, mas já vi relatos falando em 7 dias. 1250km com 22000m de altimetria em 7 dias parecem factíveis, mesmo sabendo que o terreno vai ser bem desafiador.
o retorno da nossa parceria em 2021 foi de 5,21%. A cota encerrou o ano a R$1,646642449.
Nossa parceria ficou 17,13 pontos percentuais além do índice Bovespa, que rendeu –11,92% no ano.
Ano
Nossa Parceria
Ibovespa
2017
29,44%
26,86%
2018
11,51%
15,03%
2019
59,25%
31,58%
2020
–9,23%
2,92%
2021
5,21%
–11,92%
Acumulado
119,52%
74,06%
Nossos ativos sob administração cresceram 22,89% no ano. Agradeço a todos os parceiros pela confiança e novos aportes. Continuo sempre investindo toda a minha poupança na parceria. Eu não teria pensado em destino melhor para as economias da minha família, e esse alinhamento de objetivos entre todos os parceiros é algo que considero poderoso para nossos resultados a longo prazo.
O ano de 2021 provavelmente não vai ser lembrado pela História como um dos melhores anos da nossa parceria, e ao mesmo tempo foi nosso segundo melhor ano até agora quando nos comparamos ao Ibovespa. Um ano é uma fatia um pouco arbitrária, e quase sempre muito curta, para se medir resultados de investimentos. Diferente de 2020, entretanto, me sinto mais satisfeito com a maneira que concluímos este giro em torno do Sol: boa parte dos fundamentos da nossa estratégia tem como objetivo prevenir, ou minimizar, perdas de cotação em momentos de queda do mercado. Vamos imaginar um cenário com anos em que o mercado acionário perca, digamos 10%, e nós ficarmos em 0%. E nos anos em que o mercado acionário se valorizar 10%, nós simplesmente empatarmos em 10%. Alternando estes resultados a cada ano, em 10 anos o mercado terá perdido 4,9%, e nós teremos valorizado 61,1%.
O marcador mais útil da conclusão de 2021 é que agora temos 5 anos de resultados a contabilizar. Cinco anos é o que eu considero o mínimo dos mínimos para se avaliar um esforço de investimento. Neste período nossa parceria se valorizou 119,52%, frente ao Ibovespa que se valorizou em 74,06%. É um rendimento 61,38% maior. Sob essa ótica, aí sim eu me considero bastante satisfeito: foram os meus primeiros anos cuidando do patrimônio de terceiros. Se eu tivesse estabelecido um objetivo numérico para estes primeiros 5 anos, eu não teria ousado imaginar nada próximo disso. Fim da hesitante autocelebração.
Começamos o ano com Cielo, Cyrela, Hering, Mahler Metal Leve e Metalúrgica Gerdau, mais pequenas posições na CVC, IRB Brasil e Trisul em nosso portfolio.
O grande erro do ano, ou pelo menos o maior revés na cotação, foi a Cielo. A Cielo vem caindo de preço desde bem antes da nossa primeira compra, 3 anos atrás. Vinda de um quase monopólio, a Cielo viu diversos competidores surgirem e oferecerem máquinas de pagamento, depois o início da pandemia e logo em seguida o surgimento do Pix. Hoje a Cielo é vendida a 1,5 vezes seu lucro anual tomado pela média dos últimos 10 anos. Mesmo olhando o fluxo de caixa livre dos últimos 5 anos, a Cielo hoje é vendida a um múltiplo de 1,67. Em outras palavras: sob essa ótica, ou a Cielo vai deixar de existir em breve, ou estamos diante de uma empresa bastante barata. Eu acredito que os pagamentos por cartão, Pix e outros meios digitais vão crescer nos próximos anos, à medida que uma parcela maior da nossa população tenha acesso a eles. Eu dificilmente investiria nos pagamentos em papel-moeda para o futuro. Em suma, mesmo tendo errado o melhor momento de nos tornarmos sócios da Cielo, aos olhos de hoje tenho toda a intenção de manter uma participação significativa na empresa e aguardar.
Nossos investimentos na Cyrela e na Trisul, ambas construtoras, também nos trouxeram choro e ranger de dentes este ano, caindo próximo de 50%. Depois de acontecido fica até fácil listar motivos para sucessos e fracassos: neste caso é provável que a subida das taxas de juros, mais a inflação e a enorme incerteza trazida pelo Covid tenham assustado os investidores. Olhando as empresas, particularmente a Cyrela que representa mais de 90% dos nossos investimentos em construtoras, o que temos é uma empresa com dívidas sob controle e sendo vendida a 7,4 vezes seu fluxo de caixa livre médio dos últimos 10 anos. É um número muito maior, portanto mais caro em teoria do que o da Cielo, mas já com um potencial de ser atraente. Neste preço bem mais baixo, há poucas semanas fizemos um acréscimo na nossa participação na Cyrela, que agora fica próxima de 20% do nosso patrimônio.
Este ano nos despedimos, não pela minha vontade, da Hering. A empresa foi comprada pelo Grupo Soma, conhecido pelas lojas Farm e Animale. A Soma pagou aproximadamente R$36 por ação, quase o dobro do preço que a Hering custava no começo do ano, numa mistura de dinheiro e ações. Um bom retorno para nós, ainda que eu pense que a Hering valesse pelo menos R$45. Ao final me desfiz das nossas ações na Soma, cujos fundamentos não traziam clareza para o futuro.
Desmontamos nossas posições na CVC e na IRB Brasil. Ano passado escrevi que estas movimentações tiveram caráter mais especulativo do que de investimento, refletindo situações peculiares nas empresas. Talvez uma pitada de sorte nos trouxe resultados bastante bons aqui, de triplicar e dobrar os investimentos. E um punhado de precaução me impediu de fazer uma aposta maior nessas empresas, limitando nossos ganhos.
Inauguramos duas novas participações este ano: Grazziotin e Cogna.
A Grazziotin é uma rede de lojas do sul do Brasil, ela mesma com uma relativa diversificação de atividades. A empresa não tem dívidas e esteve a um preço atraente no meio do ano. Logo após a primeira compra ela subiu muito de preço, e acabei não montando uma posição muito significativa.
A Cogna é um conglomerado de escolas e universidades, trabalhando para crescer no ensino à distância. O setor educacional no Brasil tem sido uma montanha russa, e alguns anos atrás as ações da Cogna, na época chamada Kroton, custavam quase 10 vezes o preço atual, sem ajustar pela inflação. Não posso defender que a Cogna é uma empresa extraordinariamente boa: ela vem sendo construída à base de aquisições, e ainda é incerto que o conjunto vai funcionar bem por décadas. Por outro lado, considerando o preço de entrada e algumas das suas subsidiárias, acredito que ela valha significativamente mais do que o preço que pagamos. No caso da Cogna, adquiri logo de saída, há poucas semanas, o equivalente a 20% do nosso patrimônio total.
Terminamos 2021 com Cielo, Cogna, Cyrela, Grazziotin, Mahler Metal Leve, Metalúrgica Gerdau e Trisul. Aproximadamente 12% do nosso patrimônio está em renda fixa. Nossa filosofia continua a mesma de sempre: buscar boas empresas, com gestão responsável e mentalidade de longo prazo. Então, nas raras oportunidades em que encontrarmos estas empresas a preços bastante convidativos, nos tornarmos parceiros.
Muito obrigado pela parceria neste ano. Desejo um 2022 de muita saúde e felicidade para você e sua família.
From now on I will use a more encompassing “Work”. 2021 was a year of important steps towards a goal I’ve held for a few years now: to become a full-time investor in the general style of a Warren Buffett and a Ben Graham.
I started the year helping spawn a new team at Circuit, the first official team there. We were happy to welcome two engineers, Christian Kaisermann and Vitor Paladini, who truly hit the ground running. They had worked together before, and their rapport made things move from the beginning.
Around April a friend whom I admire very much, Bruno Bergher, told me about Metabase, a company he had recently joined as VP of Product. Metabase does BI and data visualization. The product seemed quite nice, the company had a good online reputation, and I could imagine that the domain was interesting. Most of all, Bruno is really one of the smartest people I’ve had the luck to meet.
Bruno asked me if I’d consider a position at Metabase. I was satisfied at Circuit: the people were really nice, the work flowed well and the company was soaring, having grown revenue 3 times last year while almost entirely bootstrapped. There were two issues for me: working with Firebase, something I touched every day, was not enjoyable, and judging by the company setup, getting a pay raise would not be trivial. I brought up both subjects, Firebase multiple times, and salary a couple of times. The outcomes of those conversations were understandable from Circuit’s point of view, but didn’t point towards a great convergence with what I preferred.
It seems to happen repeatedly in tech, at least in our long-standing economic cycle, that companies focus on recruiting but not on retaining. Although this did not happen so literally at Circuit, we often see professionals start jobs at much higher salaries than great people who had joined a company months or years before. The churn seems suboptimal from a long term perspective, for everyone involved. As it happens, from the perspective of an employee, joining a different company means you will earn much more than staying put.
Long story short, in May I joined Metabase. Again I went from leading to being an engineer.
In parallel, and I had being working on this for over a year, I kept studying for the Brazilian equivalent of the CFA. Here we call it CGA. Mid-year, I passed. This certification opens the legal doors for me to manage investment portfolios, funds and so on. Investing is something I started reading about in 2007 or 2008, and it became a serious pursuit for me. To illustrate, I have a YouTube channel where I study companies in public, and I’ve done over 730 episodes of it. I started a very informal investment partnership in 2017 that has been beating the most important Brazilian stock index since inception. It’s something that I’ve frankly been enjoying much more than software. It may be because I only have an hour or so a day to dedicate to it. The fact is, it’s going well and I love to work on a much, much wider canvas than the one I see in software.
The experience at Metabase has felt peculiar and is still hard to describe, even after 8 months. It’s a very loose organization that has grown its headcount a lot recently. I don’t get to work with Bruno directly. The codebase and processes have been a challenge for me, and I’ve worked on a few challenging codebases and processes. It feels like I still haven’t understood the company enough to be able to describe it. I am thankful to be there, but must admit I miss working with a bit more structure, and I certainly miss the more frequent human interactions and strategic work of leadership and management.
I have one very clear goal for 2022: to start a formal investment partnership. It will take the shape of an investment “Club,” a legal vehicle in Brazil that is suitable for investment funds that are still not large, between 1 and 15 million reais. I will be able to, indeed must work on it only part-time —as a shareholder in the fund, by law I can’t be paid to manage the portfolio. This will be a very important step in growing a currently informal partnership that has beaten the Brazilian stock index by 61.38% over the last 5 years into a true investment fund a few years from now. If you are reading this and would like to know more about investing with the partnership please write me at gustavo@poe.ma.
In 2021 I finished 32 books (if you are counting, 2 are not in Goodreads). This year, 15 of the books I finished were audiobooks. I ended last year realizing I had read very little in languages I am learning, and this year I made a nice correction and read 6 complete books in Italian. Another book I read in French.
Never before have I juggled so many unfinished books. I don’t even know how many I can say I am ‘reading’ at the moment. Twenty, maybe.
This year will not stand out as a great reading year in my life, although I lucked out on 4 books. I dedicated a lot of this year to studying for the Brazilian equivalent of a CFA, plus a lot of cycling. I am happy with my priorities, as I got my certification to be a professional investor and had many adventures on the bike. I suppose I was not very diligent about choosing books to read, it was a lot of trial and error. All in all, I’m satisfied with the priorities I set. Let me say a word or two about the books I liked.
I finished Robert Caro’s ‘Working: Researching, Interviewing, Writing’ just a few hours ago. Caro is considered one of the best biographers of the last many decades. He started out with a classic called ‘The Power Broker,’ about Robert Moses’ long-lasting influence over New York State. Afterwards he embarked on a multi-volume biography of Lyndon Johnson. ‘Working’ is the first book by Caro I have read. In it he remembers how he started out as a newspaper journalist, his difficult transition to writer of books, then biographer of a US president. This short book served as a great introduction, since his subjects were relevant before my time and I’m not a big politics reader. No matter: Caro’s prose is phenomenal, as is his reading on the audiobook. His trajectory, how he finds out and is shocked to learn he’s happiest reading files and archives, his own ambivalence towards his compulsion to know everything, see things firsthand and consequently live in places his subjects lived or affected, his approach to research, extracting information from interviewees and his writing habits sure can serve as inspiration and maybe consolation to others who like to dive deep.
‘Atlas of Poetic Botany,’ by Francis Hallé is a short book on curious, yes, poetic plants around our planet. They are illustrated by the author in a plain and beautiful style. Each chapter is no more than 4 pages, describing a particular species of plant, always very unique. You’ll find plants that “walk”, plants with just one gigantic leaf, the famous corpse flower and many others. This was the absolute only book I finished this year that was not in digital form, and the way it’s put together more than justifies the…plants that gave their lives for the paper to print it.
Another book I really liked was ‘50 Sábados’ (50 Saturdays), by Fernando Zogaib. It is the memoir of Zogaib’s bicyle crossing of Brazil, north to south. He ended up doing it in 50 days, which he refers to as a string of Saturdays. What struck me most about this book, beyond even the athletic and mental feat, is Zogaib’s candor. He does not hold a feeling, a memory to himself. Having read many books about great athletes, crossings and long distance adventures, this one holds up against the best in terms of emotional openness.
As a final mention, I learned interesting things from ‘Order Without Design: How Markets Shape Cities,’ by Alain Bertaud. The author’s main goal seems to be to describe the interactions between urban planning and urban change brought about by the forces of populations, day by day. The chapter about urban mobility struck me the most: Bertaud writes an interesting critique on things held true by many of us regarding public transportation, use of cars and balancing different modes in a city.
I went through a few months without finding a book I was excited about, and just a few days ago I again found luck with ‘Working’ and another one I haven’t finished quite yet. What a good feeling. Next year will be the one to start listening to audiobooks in Italian — sono pronto!
Mas antes de começar, me permita ajustar as suas expectativas de leitura: este relato vai ser detalhado e às vezes bastante técnico (ao menos para quem nunca precisou alinhar uma roda com número ímpar de raios, tremendo de frio e sem nunca ter feito isso antes nem em casa). Quanto à minha experiência pessoal, não omitirei nenhum detalhe. Vai ser a verdade nua, crua e, em certos lugares do corpo, assada.
Antes de tudo
Uma das perguntas que fazem parte do formulário de inscrição do evento é mais ou menos assim: o que você já fez na vida que te faz acreditar que pode participar de um Bikingman?
Em dezembro de 2006, fui de Caloi Supra mais 12 quilos num alforge Curtlo do Rio de Janeiro para a Guarda do Embaú, Santa Catarina. Eu e um querido amigo. Para quem não se lembra, ainda não existia smartphone. Existiam páginas rasgadas do Guia Quatro Rodas que derreteram ali por Ilhabela.
Em 2008, com esse mesmo amigo, o Jared, e sua esposa Cathie (remadora olímpica em Atlanta 96…até que eu tenho uma certa facilidade em me embrenhar com pessoas muito melhores) pedalamos parte do Sul da Islândia.
Depois de anos usando a bicicleta apenas para o meu transporte na cidade, em janeiro de 2020 saí de Penedo sem destino, com outra Caloi de uns 16 quilos mais alforges com uma roupa para cada dia. Roupa normal. De algodão, de brim. Traduzindo: de chumbo. Passei por Mauá, Bocaina de Minas, Carvalhos, Aiuruoca e Caxambu.
Veio a pandemia e ficamos todos de março a julho sem sair de casa. Naquela angústia generalizada, “acendendo” um wafer de chocolate no outro, cheguei a 98 quilos (tenho 1,78m). Fiz a fatídica continha em um site de nutrição e fiquei sabendo que agora era uma pessoa obesa. Imediatamente pedi ajuda para uma amiga querida e fiel: a bicicleta.
A coisa pegou ritmo. Descobri o mundo Randonneur. Descobri um tipo de bicicleta chamado “gravel”, feita para estradas de cascalho e terra. Comprei uma dessas. Descobri onde usar essa bike: em uma prova de 200km saindo de Mogi das Cruzes, organizada por um tal de Vinicius Martins. Completei a prova quase sem conseguir me mexer, e ao me receber o Vinicius me pergunta: já pensou em participar do Bikingman?
Entre a Inscrição e a Largada
De vez em quando eu uso a técnica do “atirar nas estrelas pra acertar na Lua”. Tenhamos em mente que meu objetivo no começo era emagrecer. Meu raciocínio foi simples: se eu fizer esse Bikingman preparado, caso eu continue gordo, realmente tem algo de muito errado na minha tireóide ou coisa do gênero. Já te adianto: não tem. De fato eu fui emagrecendo só de pedalar, mesmo comendo meia caixa por dia do delicioso cereal Crunch de chocolate.
Sou influenciado por uma historinha que meu pai contava quando eu era criança. É a do “Adams, o Óbvio”. Adams sempre fazia as coisas óbvias a se fazer, e sua vida deu certo assim. Na mesma filosofia, e sabendo que o percurso do Bikingman Brasil estava ali na internet, resolvi fazer o óbvio: me inscrever de uma vez, fazer logo o percurso como treino, e ver o que era aquilo.
Fui, caí no quilômetro 495, cheguei com a bike quebrada até Ubatuba no quilômetro 550. Abortei. Já existia um grupo de WhatsApp dos inscritos na prova. Eles acompanharam tudo e me ajudaram muito. Em especial o próprio Vini e o Fred Kastrup, mas também o Nuno Lopes e tantos outros.
Mais tarde recebi mensagem do Flavio Tomiello, ciclista do Rio assim como eu. Eu já sabia dele por um brevet de 1000km em Minas, muito bem blogueirado pelo Leo Pedalando pelo Mundo. À distância eu achava que o Flávio devia ser muito foda. Hoje eu tenho certeza. O Flávio me colocou em um grupo de WhatsApp com nome sugestivo: Cascalho Carioca.
Fizemos várias pedaladas, a amizade foi se construindo. Fomos em mais brevets do clube randonneurs de Mogi. Junto com o Diego Uribbe, do Rio, e o Luisinho Araújo, de São Paulo, fechamos a série Super Randonneur (provas de 200, 300, 400 e 600km). Completamos todas em terreno misto, feito que o clube premia com o fugaz, misterioso e nunca entregue Paralelepípedo Dourado.
Muito sentido com meu fracasso no primeiro treino, operando no óbvio e sempre com pouca noção, fui treinar de novo no percurso completo. É óbvio que o óbvio nem sempre é o melhor caminho, mas isso ficaria ilustrado melhor apenas muito mais tarde. Escrevi também sobre esse treino, que comecei com o Vini e o Fred, e concluí sozinho em 114 horas (o tempo máximo para a conclusão da prova é de 120 horas). Poderia haver algum sinal melhor de que eu era capaz de completar aquele percurso no tempo máximo do que já ter feito exatamente isso?
Nós da Cascalho Carioca (ou CXC) fomos ficando próximos e conhecendo melhor as ideias e planos de cada um para a prova.
O Flavio, a meu ver, tem a característica Randonneur clássica. Não se interessa em competir, mas quer completar o desafio bem e dentro do tempo.
O Diego tem também essa pegada randoneira e, eu às vezes penso, também um desejo competitivo que ele ainda não quis explorar mais a fundo.
O Leo Cardoso é a locomotiva-artesão do Cascalho Carioca. Alto e forte, puxa o trem no plano e sobe bem. Ele foi produzindo suas próprias bolsas e acessórios para a prova. Somando essa dedicação fabril a uma filha pequena e responsabilidades familiares, acabou não podendo treinar muito duro. Por outro lado, sabe mexer bem na bike se precisar.
Ernesto é o cicloturista mais puro da turma. Já rodou a América do Sul e Cuba. Entre pedalar mais de 50km por dia e tomar uma cerveja, em geral vai ficar com a segunda opção.
Felipe Coquito também é um Randonneur experiente, tendo feito 200, 300, 400, 600 e 1000km em uma semana, para não falar da Paris-Brest-Paris, evento culminante do randonneurismo. Coquito também gosta de participar de competições, possivelmente com cerveja nas caramanholas.
Na figura de membro honorário da Cascalho (ou o Cascalho Carioca, ou CXC, tudo vale), temos o Nuno Lopes. O Nuno tem seu próprio mundo no ciclismo, é dedicado integralmente a isso, e coordena o Ride Club, um super grupo no Rio. Nuno completou com sucesso a comprida e duríssima Trans Am. Tenha você 2 ou 102 anos de idade, o Nuno vai te chamar de “jovem”.
A 10 dias da prova, surge um novo inscrito com o DDD 21. Ele me escreve falando que tinha lido meu relato do treino, tinha decidido havia poucos dias entrar nessa, e tinha perguntas sobre bolsas de bike. Seu nome de batismo: Gabriel Tavares. Seu nome: Gabo. Fomos pedalar com o Gabo e ficamos convencidos do seu pedigree de aventureiro quando sua primeira piada foi uma ponderação curta porém altamente técnica sobre o funcionamento intestinal no ciclismo. Além de tudo, Gabo é profeta.
Objetivo e Estratégia
Minha meta era simples: baixar meu tempo de 114 para 100 horas.
A estratégia seria parar muito pouco e dormir o mínimo possível até Paraty, deitando ao relento para evitar o tempo de burocracia das pousadas. Depois de Paraty o plano era parar em Queluz para umas 4 horas de sono mais banho, e depois seguir até o fim.
A escolha de itens a levar também seria leve e arriscada: roupa do corpo mais um agasalho simples, bolsas de guidom e quadro, farmácia mínima, bomba de ar simples e pequena, 2 baterias de 10000 mah, celular.
Eu não ia forçar nada nas subidas mas ia fazer as descidas a 80% do risco para aproveitar os embalos.
Alinhando
Fomos de carro Flavio, Diego e eu, dois dias antes da largada. No caminho o já clássico pastel gigante do pé da Serra das Araras. Muito papo sobre a prova.
Coquito e Nuno não puderam ir. Tinham trabalho. Ernesto manda mensagem dizendo que tinha um problema gravíssimo de saúde na família, e que não poderia ir.
Fazemos nosso check-in no hotel. Vemos os banners do BMB. A diversão vai ficando tangível. Em seguida, check-in da bike para a prova. Abraçamos o Vini. Encontro pela primeira vez o Axel, criador do Bikingman. Pergunto para ele em francês tarzânico: “heureux d’être ici?” (feliz de estar aqui?) Ele: “plus q‘heureux!”
Encontramos a Cami Orsato, a Pati Volpato. São ciclistas, vão organizar a prova, e são esposas respectivamente do Fred e do Vini. Sorrisão delas, sorrisão para elas, uma sensação de que aquilo tudo seria também uma família.
Quem faz a conferência dos itens obrigatórios? O Fred. É, é tudo em família. Itens mostrados, bike pesada (14,46kg no fim das contas), kit da prova recebido.
No domingo cedo chegam Leo Cardoso e, para nossa grande alegria, também o Ernesto.
Às 9 da manhã, uma pedalada-passeio dos participantes. Momento legal para nos conhecermos e reencontrarmos. Papo com o Wel de SP, Guilherme de Sergipe, Nilton César de Fortaleza, Daniel da Venezuela, Vini, Fred e turma da Cascalho, abraço no Leo Pedalando pelo Mundo.
Vimos 3 ou 4 bicicletas de estrada no check-in e no giro. Todos se perguntavam se essa ideia de ir com pneus lisos e finos ia dar certo, ainda mais com a previsão de chuva nos 2 ou 3 primeiros dias, justamente os que tinham mais terra.
A Largada
Dormimos Diego, Flavio e eu no mesmo quarto. Diego não pregou muito o olho. Acho que o Flavio dormiu bem, e eu dormi bem. Eu me sentia mais tranquilo por já conhecer o caminho.
Acordamos às 3:30 da manhã. Banho no corpo, café na garganta, chamois na bunda, ligar o GPS, últimos ajustes e alinhar.
A largada foi em blocos de 10 atletas, separados por alguns segundos. Larguei no terceiro bloco, junto com o pessoal do Cascalho Carioca, o Marco Teixeira, e a dupla Liandro e Idan.
Eu havia conhecido o Marco virtualmente quando ele fez o seu reconhecimento do percurso. O Marco hoje tem 50 e tantos anos, e continua firme e forte. Ele foi campeão brasileiro de contrarrelógio na elite. Meses depois do primeiro contato, largamos juntos em um brevet. Ele estava na minha frente no começo desse brevet, uns 300 metros talvez, quando eu vi que pegou o caminho errado. O cara pedala forte, eu não ia conseguir alcançá-lo, então torci para ele se dar conta do percurso logo. Acho que ele acertou depois, mas ele não concluiu esse brevet. Ele não tinha muita rodagem em navegação, isso me preocupava em relação a ele.
O começo da prova passa por dentro de Taubaté. Logo atravessamos a Avenida do Povo, coberta e ladeada por arquibancadas que, mesmo vazias às 5 da manhã, dão todo um clima aos acontecimentos.
Começando a sair da cidade, estava formado nosso gruppetto: Marco puxando, eu, Diego, Flavio, Gabo, e a dupla Bruno e Edu do Rio Grande do Sul.
Alguns quilômetros mais tarde avistei Joab e mais alguém uns 200 metros na nossa frente. Tentei atravessar pra alcançar, ninguém mais foi junto. Acabei voltando ao meu grupo original, apenas mais cansado. Ideia de jerico tentar alcançar o Joab. Para praticamente todos, senão todos os participantes de uma prova de 1000km sem assistência, agir como se estivesse numa prova de estrada normal não faz sentido nenhum. O ganho do esforço pode ser melhor obtido de muitas outras formas. Primeira lição internalizada.
Fui sendo ultrapassado pelos favoritos. Me lembro de ver o Bruno Rosa, Dimitri, Vicky e Leo Pedalando Pelo Mundo passar. Outros favoritos já tinham largado na minha frente e eu não os veria na prova.
Alcançamos o Fred Kastrup. Ele vira pra mim e fala: “ôu ôu ôu, tá indo pra onde? Tá achando que vai chegar que horas? Calma aí.” Fredão já me viu em algumas roubadas e se sente à vontade pra me corrigir.
Logo chegou o Juliano “Rider” Gehrke, e a primeira subida. Léo Cardoso já tinha ido, Diego já tinha ido. Na minha frente foram desaparecendo o Flavio, o Juliano e o Fred, lado a lado. Fred tão calmo antes, agora parecia cheio de pressa. Pra mim ele só queria ficar mais um tempo com o Juliano. Isso tudo de que estamos falando aqui é amizade e amor.
Na primeira subida, de asfalto, me lembro de parear com a dupla Bruno e Edu. Gabo um pouco para trás. Muito mais para a frente andei junto com Luisinho, depois Pupo e Wisley. Segui Wisley, de longe, numa bifurcação. Caminho errado, meia-volta.
A chuva nos acompanhou desde a largada. Aqui, no quilômetro 40 ou 50, ela apertou. No quilômetro 63 mais ou menos, começa a terra. Chuva deixando o terreno mais custoso de superar. Continuo com Bruno e Edu, também vejo Mixirica, Jéssica, a colombiana Angie, Nilton César. Estou mais lento que eles um pouco. Estou pesado: 2 caramanholas de 900ml com Gatorade, 1 Gatorade no bolso, 1 Toddynho e 1 Nescau na bolsa de guidom. Bastante comida, alguns sachês de gel. Eu não iria parar tão cedo.
Km 74, vejo o Leo Cardoso com a roda na mão. Furo. Perdeu o tubeless, teria que ir na câmara de ar. Queira ou não esse acontecimento tem um custo mental: você contabiliza que só tem mais uma câmara, depois é remendar debaixo de chuva.
Três quilômetros depois, vejo Willians Marcolongo segurando a corrente. Algum elo abriu, certeza. Tudo bem? Tudo bem. Boa sorte, vai na fé.
Não muito depois vejo o Dimitri, apontado como um dos maiores favoritos, pedalando no sentido contrário ao meu. Por um instante pensei que eu tinha me perdido. Não, eu conheço esse caminho. Pergunto para ele se está tudo ok e ele faz com a mão o gesto de uma faca cortando a sua garganta. Ele estava fora dessa.
Chego ao Bar do Trevo. Muita gente parada ali. É um bom ponto para uma pausa, eu mesmo parei ali nos treinos. Cruzo olhar com o Axel, vejo Pupo também. Mas não paro. Marco Teixeira sai do bar na minha frente e vai sumindo.
Nesse trecho, pela primeira na vida fiz xixi de cima da bike. Foi simples na verdade: você fica em pé, abaixa o bretelle (bermuda), aponta para o lado e manda ver. Meu vocabulário de modos de realizar necessidades fisiológicas ainda se expandiria mais durante a prova.
No final da primeira terra, vejo o Wel fora da bike. É normal uma parada na transição de pisos, mas ele está ajeitando o joelho, parece. Ele caiu a 100 metros do fim da terra. Nada sério, felizmente.
Passo pelo curto trecho de asfalto e paralelepípedos, e logo começo a segunda subida na terra. Ali estive muito com o Pupo, o Wisley e o Luisinho. Pupo ia imitando a Marília Gabriela. Tomei uma aulinha deles de como andar em poças de lama. Houve uma alteração nesse trecho em cima da hora, virando à esquerda antes de chegar no topo. Penso que o Vini quis eliminar um trecho corta-pneu, cheio de pedras no começo da descida. A prova recomendava pneus 35mm que realmente teriam dificuldade ali. Por outro lado, com a chuva tivemos um novo lodaçal para transpor — junto com uma cavalgada coletiva…passamos por inúmeros cavalos e cavaleiros usando imponentes e invejáveis capas de chuva.
Fomos seguindo por um caminho lindo que vai dar na Cachoeira dos Pretos. O céu foi clareando, e um Sol forte apareceu. Na chegada ao asfalto, desci da bike pela primeira vez. Estávamos com 140km de prova. Protetor solar, chamois, limpeza e óleo na corrente.
Passei por Joanópolis direto. Estava me sentindo muito bem, sem forçar nada. Um trecho mais longo de asfalto em direção a Bragança Paulista. Passamos por uma rodovia expressa e no km 180 começa uma subida cruel, a Grande Pirâmide de Bragança. Fui fazendo zig-zag sem vergonha nenhuma, economizando energia. A descida é bem vertical também. Fui no arrojo, logo vi uma nova estrada de terra.
Joab me alcança, vamos trocando ideia e ele me passa as novas: ele e outros tantos, incluindo o Luisinho, tiveram que parar numa oficina em Joanópolis com problemas variados, principalmente de câmbio. Já tinha gente trocando pastilha de freio com 10 horas de prova.
Vamos pedalando juntos, a terra vira asfalto, Joab numa tocada mais forte e digo pra ele seguir em paz na frente. Ele vai abrindo e a estrada vai virando uma longa descida quase em Bragança.
Com Joab uns 200 ou 250 metros na minha frente nessa estrada de mão dupla, ele e eu a mais de 60km/h, sem aviso um carro vermelho atravessa da pista do outro lado, bem na minha frente, e vai por uma perpendicular à minha direita. Ele não me viu, não posso acreditar que tenha visto. Eu estava muito atento e precisei desviar tão forte que entrei na faixa da esquerda, na contramão. Não fosse isso eu teria entrado com tudo naquele carro, e quem sabe o que teria acontecido.
Foi a vez em que estive mais perto da morte que me recordo. Passei raspando pelo carro e notei que meu coração nem chegou a disparar, não senti aquele jato de adrenalina viajando pelo corpo. Mesmo assim senti profundamente aquele momento. Penso que ele influenciou a minha prova e nunca mais vou esquecer essa.
Sigo sem parar e vejo Joab de pé na calçada: problema com as pilhas do GPS. Só assim mesmo para eu ficar parelho com o Joab, o cara pedala muito.
Sobe-desce no asfalto para Piracaia, a noite e eu chegamos. Eu estava bem mais adiantado do que quando fiz os treinos.
Finalmente, no km 220, paro para um açaí e um sanduíche. Foi a minha maior distância da vida sem abastecer nada, nem água. Wel chega na lanchonete também, ele iria pernoitar em Piracaia. Na saída ainda encontrei a Jéssica, que também ia dormir por lá.
Dando um confere no celular, vi mais sinais do estrago que a prova começava a fazer: Leo tinha ficado sem nenhuma câmara de ar reserva e sem dois raios. Isso em Bragança Paulista, onde a prova não chega a um quinto do total. Ernesto tinha tomado uma mordida de cachorro e precisava ir a algum lugar tomar antirrábica. Ambos precisaram abandonar. Os ciclistas que vieram de bicicleta de estrada começaram a abandonar, e nenhum chegaria ao quilômetro 400.
Eram 8 e pouco da noite quando peguei a estrada para Igaratá. Acho que fiz o asfalto todo sozinho. Na terra, alcancei algumas pessoas: dois ou três estrangeiros, talvez também o Liandro e seu parceiro Idan, e sem dúvida nenhuma o Júnior Gonçalves e o Marco Teixeira.
O Júnior é difícil de passar batido: conversador, engraçado e parece ligado no 220 o tempo todo. Ele vai pedalando e fazendo reportagens para seu canal de YouTube, chamado O Segredo é Girar. Fomos juntos um tempo, nós e o Marco.
O caminho para Igaratá teve seus momentos de dificuldade. Não houve Lua em momento nenhum, tanto pelas nuvens quanto pela fase lunar mesmo. Escuridão completa. Eu conhecia ali e sabia que o chão não tinha pedras nem curvas fechadas. Descia sem economizar. Admito que a bicicleta deu umas pancadas em alguns buracos-surpresa. Mas era uma corrida, eu queria baixar meu tempo e tinha entrado disposto a arriscar.
Na saída de Igaratá passo por um atleta gringo, confesso que não sei quem era. Ele parou na cidade, parecia indeciso. Falei para ele que “la carretera” (chutei uma língua, se bobear ele era alemão) estava a 500 metros dali, e depois melhorava. Tentei encorajá-lo a seguir. Na verdade a carretera ficava a 50 metros dali, e melhorava muito mesmo.
Aí a coisa rendeu. Asfalto perfeito, acostamento perfeito, descidas longas. De tanto apoiar todo o meu peso no pé esquerdo, precisei parar num ponto de ônibus e fazer uma auto-massagem. Desta vez ficou claro pra mim esse vício de postura que corrigi em seguida e simplesmente não tive mais dores físicas na prova. Do coração tive sim, mas vamos pedalando.
No ponto de ônibus o Júnior e o Marco me passam, eu parto, me reúno com eles de novo.
Chega a “Paris-Roubaix” do Bikingman. Uns 7 a 10km de paralelepípedos. Diferente da Paris-Roubaix verdadeira que é muito plana, nosso querido Vini selecionou um “paralelo” com tudo a que temos direito: muitas subidas e descidas.
E foi no km 303, na maior descida em paralelepípedo, descendo como se não houvesse amanhã, que ouvi um som atrás na minha bike: “tlín”. Na hora eu sabia: um raio da roda traseira tinha abandonado a prova.
Num pedal de sábado com os amigos, usando freio a disco, perder um raio não é nada. A chance de chegar em casa é praticamente 100%. Eu mesmo tinha perdido um raio no km 105 de um brevet de 400km em terreno misto, segui com cuidado e completei a prova.
Eu poderia consertar o raio em alguma oficina, mas o dia que estava nascendo era feriado de Finados. Aí seria mais difícil. Eu mandei mensagens perguntando sobre mecânicos no caminho, recebi dicas inclusive, mas decidi seguir na estratégia de risco: ia tocar a corrida como se nada tivesse acontecido até Ubatuba (prevista para o terceiro dia) e consertar lá, na excelente Trilha Norte.
Minha estratégia foi muito inspirada no Nuno. Indo de carona com ele para a outra corrida de bike que participei (sim, este Bikingman foi apenas a minha segunda corrida), ele falou que vai para todos os eventos com o mínimo dos mínimos. Sem câmara de ar em provas de estrada, com um kit muito básico e um corta vento em brevets, mesmo longos. A minha interpretação dessa estratégia é que ele quer ir bem e sabe que sempre existe uma próxima oportunidade caso o risco não pague. Neste caso, eu já tendo feito esse percurso e querendo me esticar, experimentei essa pegada do Nuno.
E foi pensando no Nuno — ele tinha me contado sobre treinos específicos de dormir em praças — que parei sozinho em Guararema, no quilômetro 284, para dormir. Guararema é linda, e a prova passa por um beco fascinante. É muito fácil passar reto por esse beco, é claro que eu tinha feito isso no primeiro treino. O mais lindo é que, errando, em 30 metros você está na beira do rio Paraíba do Sul. Aí você percebe o erro mas se deleita com um visual e tanto. Eu nasci em Jacareí, vale do Rio Paraíba, passei meus primeiros anos em frente a esse rio. Num sentido mais profundo do que posso articular, é o meu rio. É o jeito de ser das pessoas que cuidaram de mim quando eu era bebê, as histórias de amor que me contaram, mesmo muitos anos mais tarde. Ter atravessado com a bike e amigos novos a foz desse mesmo rio em outra ocasião, demarcando a fronteira Rio-Espírito Santo. Minha própria trajetória de vida, indo morar no Rio criança. Eu tinha que dormir ali, tinha que ficar ali um pouco.
Encostei num banco de praça, coloquei a bike perto, apoiei a mão nela para sentir qualquer vibração se alguém mexesse, e apaguei. Uma dica para os incautos: não durmam debaixo de árvores, porque chove em você mesmo com dia seco.
Acordei uma hora e quinze depois, com o barulho dos pássaros e céu claro. Escovo os dentes, estou passando fio dental (eu tenho cáries facilmente) e o Fred passa reto voando pela entrada do beco. Grito o nome dele, ele meio que escuta mas vai que vai. Contei até 50, e lá volta ele. Ele vem a mim, dá um alô, assiste a alguns movimentos das minhas abluções matinais, diz que dormiu em Igaratá, está com frio e vai indo. Eu respondo: vai, vai. Pensei comigo: é corrida a brincadeira agora, depois a gente passeia juntos. Também tinha outra coisa: eu estava com muita vontade de fazer cocô. Num ato Freudiano, deixei minha oferenda na primeira margem do rio Paraíba do Sul.
Passando o beco atravessamos uma lindíssima ponte férrea, um dos lugares mais lindos da prova. Para minha surpresa, tão cedo ainda, o Vini está lá. Trocamos algumas palavras, ele fecha a tampa do meu rolamento dianteiro que estava completamente aberto, e vou em frente.
O próximo objetivo é o PC (posto de controle) 1, em Mogi das Cruzes. Até lá, mais terra e paralelepípedo, porém o dia estava lindo. Eu comecei a sentir os efeitos do pouco sono nesse trecho, o humor caiu um pouco, a energia também, mas a vontade de me superar não.
Cheguei mais ou menos às 8 da manhã no PC em Mogi das Cruzes. Recebido carinhosamente, como todos os participantes, pela Pati e Cami. Elas vivem isso também, elas sabem. O PC é um hotel Íbis. Já com o processo de virar mendigo em andamento, descalço, sujo e miserável, tomei café com o Axel e a Cami. Bons papos, um momento de calma, e bora arrumar tudo para seguir.
Já saindo, vejo um rapaz próximo, falando de alguém que estava na liderança da prova quando sua bike essencialmente desmontou. Na única vez que eu conferi o mapa da prova no dia anterior, eu tinha mesmo visto o nome dele bem na frente: André Froes. Eu nunca tinha ouvido falar desse cara, que monstro. Perguntei para ele: você está falando do André? Ele: sim. Eu nem falei mais nada, minha expressão de tristeza veio sozinha. Subi na bike e só uns 10km depois me dei conta de que aquele rapaz limpo e com cara de triste era ele próprio o André. Dias mais tarde nos falamos e realmente era ele.
Segundo Dia
De Mogi o próximo grande objetivo é Salesópolis. Foi onde dormi na segunda noite dos meus dois treinos. Hoje eu queria chegar lá com tempo de sobra para ir em frente.
A prova passa pela nascente do rio Tietê no km 355. É lindo o lugar, mas desta vez não parei. Ainda tinha um bom chão, chegar na rodovia, mais 50km de terra ao redor da represa até chegar em Salé.
Ao chegar na terra para Salé, o Sol foi virando chuva novamente. Acho que fiz muitos quilômetros sem ver ninguém da corrida. Os primeiros 20km são mais planos e o sono foi batendo. Quando cheguei na cabine da Sabesp, mesmo com uma chuva fina, pedi autorização para o vigia e dei uma esticada. Deviam ser umas 11 horas da manhã, dormi ali durante uma hora mais ou menos.
Abri os olhos e vi o Luisinho chegando. Ele parou e ficou conversando comigo e com o vigia da Sabesp enquanto eu arrumava minhas coisas. Falou que vinha com o Flavio, porém a natureza o convocou para um pit-stop. Luisinho falou também que o Diego vinha vindo um pouco atrás.
Segui com o Luisinho pela parte mais difícil dessa estrada, inclusive pela parte em que, tecnicamente, é quase impossível não empurrar. Mais tarde o Juliano Gehrke falou que “zerou” a prova toda, sem empurrar. Deve ter sido o único. Eu fui recebendo essa clínica de mountain bike do Luisinho, anotando mentalmente as escolhas de linhas e as distribuições de esforços. A gente pode até pensar: é uma bicicleta, o que tem de tão complexo nisso? A resposta é: muita coisa.
Quando a estrada fica mais fácil e linda, beirando a represa, eu quis tirar uma foto ali com o Luisinho. Ele tinha me enviado mensagens várias vezes nos últimos meses para ir nos brevets mistos. Ali nos conhecemos. Um desses ele completou faltando apenas 9 minutos do tempo limite, de um total de 27 horas. No fim, nós dois mais o Diego concluímos a série e éramos amigos. Mas o Luisinho estava forte, tinha aberto distância, e não ouviu meu chamado.
A chegada em Salesópolis começa com uma espécie de ponte sobre a represa, passagem muito bonita. Depois uma sequência de subidas, tudo na terra, é claro, uma pequena descida, o asfalto vem e estamos na cidade.
Encontrei Luisinho e Junior almoçando no Mercado Municipal de Salesópolis. A cidade é charmosa, e o mercadinho também. Junior mostrou a perna inchada. Ele tinha sido picado por uma abelha, estava com dor. Coloquei a mão na testa dele: febre. Diego chega, depois Flavio.
Terminamos de almoçar, hora de um trato nas bikes. Lubrificação nas correntes, Diego troca as pastilhas de freio.
Pensamos com o Junior sobre o que ele deveria fazer do seu estado de saúde. No fim ele decidiu descansar um pouco em Salesópolis e ver se melhorava. Estávamos apenas no segundo dia. Eu mesmo tinha saído de Salesópolis no terceiro dia do treino e chegado ao final dentro do tempo.
O tempo estava bom, todos cansados porém animados, lá fomos nós rumo a Ubatuba. Do km 385 ao 550. Saímos Flavio, Diego, Luisinho e eu às 4:15 da tarde. Essa estrada tem mais uns 60 quilômetros até cair na rodovia Tamoios. No ponto mais alto ela passa por uma nascente do rio Tietê. Logo no começo das subidas vejo todo mundo em pé e fazendo força. Não era a minha intenção, e além de tudo os 3 pedalam mais do que eu. Falei para eles irem na frente.
Os quilômetros foram passando, o dia foi caindo, as nuvens chegando e se transformando em chuva e neblina. A estrada não tem acostamento. Notei que minha luz traseira tinha apagado muito antes do tempo previsto. Tentei reacender e nada. Mau sinal. Eu só tinha trazido duas. Teria que usar a única que funcionava e economizar onde pudesse, tentando recarregar nas passagens de estradas de terra que são mais lentas para os carros.
Algumas horas se passaram e eu estava encharcado. Quase chegando na Tamoios vejo o Bar da Rosana e, na porta, o trio Flavio-Diego-Luisinho. Pelo tempo, calculei que eles tinham aberto uma boa distância de mim, parado para um café e agora estavam saindo de novo. Sendo mais fortes, logo me alcançariam, e idealmente iríamos juntos, porque com aquela chuva a coisa estava perigosa. Segui sem parar.
Cheguei na entrada da Tamoios debaixo de mais chuva. A tela do Garmin não respondia ao toque, e havia muitos quilômetros ele não me avisava do caminho, apenas atualizava o mapa. Puxei o celular para ligar a navegação pelo app RideWithGPS: muito molhada, a tela nem passava pelo reconhecimento facial nem me permitia digitar a senha.
Esperei a turma alguns minutos. Nada. Haveria ainda uns 8km de asfalto na Tamoios, depois os 58km de terra do bairro de Vargem Grande. É uma estrada linda, margeando uma nascente do Rio Paraíba do Sul. Ela começa tranquila, e após o quilômetro 30 vai se tornando feroz. As subidas são curtas e muito duras. A qualidade do chão varia em função de quanta chuva caiu lá antes de passarmos. Estava chovendo havia semanas na região. Eu mesmo havia passado ali 3 semana antes, já debaixo de chuva. Essa estrada acabou com o meu primeiro treino, numa queda aparentemente boba mas que quebrou a minha gancheira de câmbio.
Eu precisaria estar com toda a água nas garrafas pra atravessar aquilo à noite: o que tem de populado nesse trecho são apenas vilarejos, e eu não sabia se encontraria algo aberto por lá tarde da noite. Decidi seguir mais um pouco na Tamoios, sozinho mesmo, até o pedágio. Lá pedi água e consegui. Pedi um pano seco e ninguém tinha. Durante esse tempo, deixei a bike com o farol piscando virada para trás, na esperança de ser visto pelos amigos caso eles passassem por mim. Fiquei ali uns 20 minutos ou mais. Nada deles. Aquele pedágio não estava promissor e eu já começava a pensar que meus amigos tinham me passado sem ver.
Segui um pouco mais, atrás de um posto de gasolina onde tomar um café quente, porque eu já estava tremendo de frio. A visibilidade era muito baixa, na velocidade a chuva batia forte. Se eu saísse da estrada seria difícil que meus amigos me vissem, mas agora eu precisava me aquecer.
Achei um posto chamado Espigão. Tudo fechado, só um rapaz ali fazendo algo que eu não entendi. Perguntei se ali teria algum abrigo para eu ficar durante um tempo. Não. Fiz outras perguntas. Nada que trouxesse esperança. Perguntei se existia um outro posto mais à frente. Sim. Do outro lado da estrada, eu teria que passar desse posto uns 2km, e quando a divisória de pistas acabasse, voltar os 2km. Era o jeito.
É preciso fazer muitas perguntas nesse microcosmo de vida que é um Bikingman. Perguntas para os outros e para nós mesmos. Cada situação, por mais inusitada e complicada que pareça, tem diversas soluções possíveis. Às vezes sabemos o que fazer mas não temos a técnica, às vezes não conectamos pontos que mais tarde ficam óbvios, e na verdade quase sempre encontramos alguma solução. O mesmo para as pessoas que encontramos: elas não estão na nossa situação. Precisamos fazer perguntas às vezes esdrúxulas e montar nosso quebra-cabeça até que um plano salte aos olhos.
Cheguei no posto Shell, corretamente batizado Posto Neblinas. Não se via mesmo um palmo à frente. Entrei com bike e tudo no restaurante, derretendo lama para todas as direções. Pedi um Nescau quente. Vi um fogão a lenha atrás do balcão. Pedi para ir perto dele. Me permitiram. Fiquei ali uns 5 minutos sem pensar.
Uma vez requentado, foi ficando inconcebível entrar na estrada que vai pelo topo da Serra do Mar naquela noite. Mandei mensagens para os amigos que estariam próximos dizendo onde estava. Leo respondeu que o Diego tinha seguido para a terra, e que o Flavio vinha atrás. Engoli em seco.
Para eles não havia mais volta. Ou seguiriam a duras penas até sair do outro lado, ou parariam em algum canto até a situação melhorar. E eu só saberia no dia seguinte, porque onde eles estavam não tem internet.
Mentalizei que eles e todos que estavam ali ficassem bem e comecei a pensar na minha vida. Saí do restaurante: mesma chuva e frio. Descobri que ali fecharia em poucas horas. Perguntei para a caixa do lugar se teria algum canto para eu deitar até amanhecer. Ela disse que ali não, mas que o seu Zé, frentista chefe do posto, era um “homem de bom coração” e teria um lugar para mim. Saí no frio e seu Zé apontou para um canto completamente inundado de chuva e exposto ao vento. Insisti se não teria algo fechado, um depósito, um banheiro. Fui baixando a proposta e seu Zé insistindo que as pessoas ficavam ali no canto molhado quando precisavam. Voltei ao restaurante e, mesmo sem fome, pedi uma janta. Precisava garantir energia caso a coisa ficasse dramática.
Jantei e fui conversar com a caixa novamente. Ela vestia um casaco violeta, e talvez numa viagem lisérgica achei que ela tinha autoridade ali, baseado numa memória altamente questionável de que, na Roma antiga, os poderosos vestiam púrpura. Faltou eu questionar se isso se transmitiu pelas gerações até aquele posto na Tamoios, mas posso te adiantar que não, ela não mandava porra nenhuma naquele estabelecimento.
Papo muito improdutivo com ela, eu já estava ali há 2 horas, resolvi implorar para o seu Zé. Seu Zé impassível. Eu literalmente implorei. Nada. Ao lado dele, uma frentista ouvia tudo. Ela perguntou se eu não tinha conversado com o pessoal do restaurante. Eu respondi que sim, tinha falado com a moça de roxo no caixa. A frentista me olhou com um olhar indefinível, mas que me induziu as outras duas perguntas: “ela não é a gerente? Quem delas é a gerente?” A frentista: “a gerente é a de casaco rosa”. Grrrl power.
Precisei de um bocado de conversa com a moça de rosa. O nome dela era incomum, não anotei e depois esqueci. Ela era brava. Depois de ouvir negativas algumas vezes, eu decidi simplesmente ficar sentado no restaurante e vencer pelo cansaço. Já com as luzes do lugar apagando, recebo uma mensagem do Gabo dizendo que estava no Posto Espigão. Eram dez e meia da noite. Mandei instruções de como chegar onde eu estava, e as coisas aconteceram rápido.
Levantei os olhos da tela e a moça de rosa me diz rispidamente: “olha, eu vou deixar o senhor ficar aqui. O senhor não tem para onde ir e eu não posso deixar o senhor lá fora nesse frio. Minha loja tem alarme de movimento, se eu não ligar esse alarme eu perco o seguro da loja. O senhor vai ter que dormir no banheiro feminino. E eu vou ter que trancar o banheiro, o senhor vai precisar ficar trancado nele até as 6 da manhã, que aí chega alguém pra abrir a loja. Tudo bem pro senhor?” Poucas vezes eu agradeci alguém tanto. Esse era o meu nível de respeito, por que não dizer medo, da alternativa, de me embrenhar na “Estrada de Vargem” naquelas condições. A moça de rosa: “agora corre lá no banheiro masculino pra fazer as suas coisas porque eu tenho que sair agora pra buscar minha filha.” Na hora eu não prestei atenção ao requinte de ter que usar o banheiro masculino quando eu iria passar a noite inteira no banheiro feminimo. Um misto de enorme alívio, e preocupação pelo Gabo que estava vindo até mim. Quanto tempo ele ia demorar para chegar? Resolvi ir no banheiro e fazer tudo devagar para ganhar tempo. Eu estava apavorado de dizer pra ela que tinha uma surpresa, tinha mais um sujeito imundo para passar a noite ali, medo de então ela enxotar ambos pra fora. Na minha cabeça naquele momento, o Gabo aparecendo lá “de surpresa”, tudo tinha mais chance de dar certo. Em retrospectiva, essa linha de pensamento que criei é o primeiro sinal muito claro de que meu raciocínio estava ficando ruim. Sempre que posso eu falo a verdade para as pessoas o quanto antes, encaro as consequências, e quase sempre as coisas vão bem porque as cartas, uma vez postas na mesa, têm poderes mágicos.
Depois de um bom tempo no banheiro, ouço a moça gritando: “senhor, por favor, eu tenho que ir”. Saí bem devagar. A moça: “olha, eu mudei de ideia.” Gelei. “O cheiro do banheiro feminino está desumano. Eu vou colocar o senhor naquela parte ali na frente da loja.” Perguntei: “é protegido do frio?” Ela: “é”. Sem nem falar, fui atrás dela olhando para a porta da loja e esperando o Gabo dar uma linda surpresa para a moça de rosa. Nada do Gabo. Ela pediu para eu pegar a bicicleta, o que fiz na velocidade de uma lesma sob efeito de ansiolíticos. Ela insistiu, já falando alto: “senhor, pelo amor de Deus, eu tenho uma filha esperando em Caraguá, me deixa ir embora, coloca essa bicicleta aí dentro e vai dormir”. Engolindo em seco, simplesmente obedeci. A sala era vazia, envidraçada da altura do peito para cima, o vidro com aqueles adesivos cheios de furinhos que normalmente nós vemos em para-brisas traseiros de táxis, com alguma propaganda impressa. Os vidros eram colados, não corriam, e pelo menos eram virados para a frente da loja, me deixando entrever o posto de gasolina. Olhei para o chão do recinto, e além de goteiras vi uma pilha de caixas de papelão abertas, que entendi serem o meu colchão para a noite. Em cima do colchão havia um cobertor delicioso e um agasalho estupendo, cortesia da moça de rosa. Olhei para trás, ela rapidamente disse tchau, trancou a porta da sala, ainda empurrou duas mesas e as encostou por trás da porta, e desapareceu. Ela tinha medo também, e ela tinha bom coração.
Dez ou quinze minutos depois, escuto a voz do Gabo. Chamo por ele, pergunto como ele está, tudo bem com ele, explico minha situação, peço muitas desculpas. Ele parece aceitar. Digo que posso passar papelões pela fresta das vidraças. Ele responde que não adiantaria porque os papelões iam ficar encharcados, mas que ele estava vendo uns tapetes de borracha que serviriam melhor como isolantes térmicos. Em instantes o Gabo tinha lido muito melhor aquele ambiente do que eu em muito mais tempo. Experiência e provavelmente mais talento.
Fiquei remoendo minha falta de coragem, e não ia pegar no sono de imediato. Decidi abrir uma das 3 mantas térmicas que vinha carregando comigo. Uma manta térmica é pouquíssima coisa além de um papel laminado do tamanho de um cobertor curto. Ela mantém as pessoas minimamente aquecidas em situações de emergência porque rebate o calor do corpo como um espelho. Vesti a manta térmica pela primeira vez na vida. Evidente que eu devia ter feito isso antes, dormido com ela duas horas que fosse na varanda de casa, depois fazer o mesmo fora de casa. Treinar isso. Mas não, eu não tinha treinado a manta. A manta em si não tem mistério, o importante seria entender até onde ela vai, do que ela é capaz de me proteger para aí sim arriscar se possível. Isso tudo eu comecei a fazer ali na prova mesmo. Na situação em que estava agora eu não iria me supliciar dormindo apenas com a manta, que faz muito barulho ainda por cima, quando tinha um cobertor felpudo ali do lado. Deixei a manta próxima e peguei o celular para mandar notícias para a família e saber do paradeiro dos amigos.
Os amigos tinham entrado na Estrada de Vargem. Mais tarde eu soube que eles estavam apenas entrando no Bar da Rosana quando eu passei por eles. Eles tinham aberto pouquíssima distância de mim. E, quando eu passei por eles, eles na verdade gritaram para eu entrar ali um pouco também. Como eles ficaram no bar coisa de uma hora, toda a minha espera na Tamoios não foi suficiente para eles me alcançarem. Quando eu fiquei parado no Posto Neblina eles finalmente me passaram, e precisaram dormir em um dos vilarejos da Estrada de Vargem, tiritando de frio.
As notícias chegaram depois, de muitos outros que passaram aperto no Inferno de Vargem: Pupo e Wisley dormindo no frio, Fred sendo salvo por um morador local que tinha uma garagem, Vicky (que completou o extra-duro-duríssimo IncaDivide) declarando que “não valeu a pena” passar ali naquela noite, seu marido Bruno que teve hipotermia.
Acordei às 5 da manhã. Gabo tinha escrito que tentou ficar no posto, mas o frio estava insuportável até para ele. Ele acabou entrando para Vargem, achou um coreto com telhado alguns quilômetros adentro, e dormiu ali.
Meu relógio intestinal tinha precisão suíça: 5 e 15 da manhã sem conversa. E foi às 5 e 15 que o urubu bicou. Não foi num crescendo, o alarme foi instantâneo e os fatos, irrevogáveis. Sim, eu tentei lutar. Durei quatro ou cinco fortes contrações, demonstrando a sabedoria da natureza em fazer da mulher parturiente. Na sexta contração olhei aquela brilhosa manta térmica, a estendi como uma canga na praia do Leblon, mirei no meio e fiquei muitos quilos mais leve. Meu último lenço umedecido tinha ficado em Guararema. Me locomovi como um caranguejo severamente perneta até meu colchão. Rasguei várias tiras de papelão, que usei mais como uma concha de sorvete do que qualquer outra coisa. Se limpar com papelão precisa ser feito meticulosamente, sob pena de mais empurrar do que remover matéria fecal. Digamos que tive sucesso na empreitada. Embrulhei tudo na manta térmica como um funesto Ovo de Páscoa, usei todas as minhas sacolas plásticas tal qual concreto e chumbo para o dejeto atômico, e depositei o ovo no canto oposto ao meu no recinto.
Fui me aprontando para que pudesse sair do meu cativeiro tão logo saísse meu habeas corpus. Apenas às 6:25 alguém apareceu. Pedi para a senhorita abrir a porta da loja para o posto de gasolina, saí a pé com meu embrulho e o desovei em uma lixeira externa. Voltei, me recuperei no banheiro, agradeci por tudo, pedi desculpa por qualquer coisa e fui embora do restaurante sem olhar para trás.
Os ciclistas experientes têm uma espécie de lista de itens a checar antes de começar a pedalar, seja saindo de casa ou reiniciando uma viagem. Pneus furados ou com grampos, espinhos, vidros. Óleo na corrente. Freios. Alguma folga no guidom ou garfo dianteiro. Trocas de marchas. Eu não posso dizer que faço tudo isso a cada saída. Também, não sou tão experiente, portanto ainda não sofri todos os reveses que uma bicicleta pode proporcionar. Apesar do tempo perdido desde Salesópolis, eu estava com a minha meta de tempo alcançável. Estava apertado mas dava. Eu tinha pressa. Conferi o pneu dianteiro, e estava um pouco baixo. Peguei a bomba de ar no fundo da bolsa e rapidamente dei uma pressão. Sei que não enchi o pneu traseiro. Não me lembro de ter olhado ou tocado nele nessa hora. Certas coisas vão ficando automáticas, seja olhar a altura do pneu estando fora da bike ou pedalando, seja apalpar o pneu ao descer da bike. Eu posso ou não ter conferido o pneu traseiro, mas não me recordo.
Voltei para a Tamoios sob a mesma chuva e neblina da noite anterior, agora com a luz filtrada do Sol. Era muito melhor. Eu estava na contramão na Tamoios, faltava muito pouco para penetrar na Estrada de Vargem, segui com cuidado por aquele lado mesmo. Ali é uma obra eterna. Sem acostamento, acabei fazendo um Mountain Bike no terreno cavucado pelas máquinas. Lembrei da minha primeira MTB (em 1990 eu não via essa abreviação por aí) e como eu aprendi a gostar de tudo isso pedalando por uma orla do Rio totalmente revirada e remexida na grande reforma para a Eco 92.
Inferno de Vargem
Finalmente entrei na Estrada de Vargem. De dia eu não tinha medo, mas muito, muito respeito. Seria minha quarta passagem por lá, a segunda com chuva mas nunca com tanta chuva. Já passei com ela completamente seca também, e a história é muito diferente. Ela é uma linda e pacata estradinha ao longo de um rio, mesmo que tenha subidas bem puxadas. Hoje seria pancadaria.
A Estrada de Vargem começa bem plana. No seco é possível render bem os primeiros 20km. Hoje esse começo já era uma planície lunar, o barro cor flicts me obrigando a desviar de crateras ao melhor estilo dos videogames antigos. São coisas transponíveis, mas que vão cobrando seu preço em energia mental.
Passei pela primeira vila, a maior da estrada, uma cidadezinha quase. Eu não ia parar. Eu larguei em jejum, com um Snickers, duas paçocas e dois géis, e queria parar apenas em Vargem Grande, com 45km bem duros no dia. Passei pelo Júnior e pelo Marco sentados do lado de fora de uma padaria. Aquela saudação rápida porque eu estava numa descida. Abri o Snickers e fui saboreando.
Segui mais um bom tempo andando rápido e bem. As horas de sono no xilindró tinham devolvido forças às minhas pernas. Cheguei na próxima vila e vi bem de longe outro ciclista, quase no topo de uma subida empurrando a bike. Fui me aproximando. Era o Gabo. Ali ele me contou que tinha dormido com a proteção de um cavalo que não saiu de perto dele, poucos quilômetros atrás de onde estávamos. Pedi desculpas mais uma vez por não ter podido abrir minha cela para ele na noite anterior. Ele pareceu sincero em seu perdão. Segui em frente no meu ritmo, Gabo montou na bike mas nos distanciamos um pouco.
Mais uma meia-hora, passo a vila que tem uma mesa de sinuca numa taipa coberta, lugar que parecia relativamente bom de parar em uma emergência. Eu fantasiava dormir ali porque já dormi em outras mesas de sinuca na vida, e sempre foi ótimo. Depois eu soube que Diego, Luisinho e Flavio dormiram, ou tentaram dormir, exatamente nesse ponto. Eles não deram muitas estrelas para o hotel não, e já tinham feito check-out havia muito tempo.
A partir daquele ponto a coisa começa a encrencar. O ponteiro altimétrico sobe rápido. Não se vê mais ninguém. Naquele clima, o chão vai virando areia movediça. Eu iria agora muito devagar, a primeira preocupação era não cair da bike. Segui com todo o cuidado do mundo, inúmeras vezes saindo do selim e atravessando piscinas de lama a pé. Não era só lama: as folhas caídas e cozidas, cocô de vaca diluído, e o caldo da bruxa ainda escondia pedras pontiagudas por debaixo.
Uma curva para a esquerda no lodaçal. Meu pneu traseiro patinou, caí em câmera lenta para a direita. Nota zero no salto ornamental: entrada muito assimétrica com um splash inaceitável para os jurados. Caí de ombro, o ombro protegeu a bike. Olhei o câmbio e desta vez o Inferno de Vargem não tinha me derrotado. Levantei ainda mais imundo, com menos um ponto de energia mental.
Eu soube de algumas quedas ao longo da prova. A minha agora, a do Wel, Luisinho falou de pelo menos 2 rolas que tomou, entre outras. Não machucando muito a gente ou a bike, custa um pouco da nossa autoconfiança e seguimos para recuperar. Quando a coisa é séria, tudo pode acontecer. A essa altura eu já sabia do atleta 103, o colombiano Javier, que tinha caído feio no primeiro dia e precisado do resgate de bombeiros. Ele seguiu para o hospital e em poucos dias teria alta. Um alívio. Todos os ciclistas são irmãos e irmãs, o risco e os prazeres da coisa fazem ser assim.
Indo tão devagar rumo a Vargem Grande, e caindo ainda por cima, fui alcançado pelo Gabo. O Gabo vinha fazendo uma corrida excepcional na estratégia dele. Ele queria concluir. Estava administrando sua energia e riscos. Desnecessário dizer que ele sabe pedalar, todos ali sabem. Era bonito ver como diferentes expectativas, forças, estratégias iam resultando em encontros ao longo da prova. De algum jeito certos vetores se anulavam e estávamos agora ali emparelhados.
Falei para o Gabo que aquele trecho exato já tinha acabado com um treino meu e que eu iria como uma tartaruga. Ele entendeu e seguiu só um pouco mais rápido, o suficiente para sumir em minutos.
Mais uns 10 ou 15 minutos e o Júnior me alcançou. Não me lembro se o Marco estava junto ou vinha logo atrás. Perguntei do estado de saúde do Júnior e ele me disse que a dor e febre continuavam, que estava à base de remédios. Tudo isso com a voz mais animada do mundo. Eu via a perna dele, estava mesmo muito inchada. Eu imaginava o pique do Júnior numa situação boa de saúde.
Estava ao lado do Júnior quando senti a bicicleta diferente. Na hora eu soube e falei: “Júnior, furei. Segue aí.” Desci da bike e enchi o pneu traseiro. Há 8 meses eu uso o sistema tubeless, que abre mão das câmaras de ar em troca de um líquido emborrachado, que coagula e veda os furos. Em troca, o sistema tubeless promete mais rolagem dos pneus e uma grande redução nos “pinch flats” ou “mordidas de cobra”, furos comuns quando batemos a roda forte e ela cria pequenos cortes na câmara, dois furinhos com a aparência de uma dentada de serpente. O sistema é tão bom que, com os pneus que eu estava usando, WTB Venture 47mm, em milhares de quilômetros eu não tinha furado nenhuma vez. É comum o furo demorar um pouco a selar, então enchi o pneu e rodei um pouco, eu não via ar saindo e quem sabe ele teria selado? Trinta segundos na bike e o pneu baixou. Agora ainda um pouco cheio, tentei encontrar a saída de ar. Parecia vir da borda de um cravo lateral, mesmo lugar onde tive meu único outro furo com tubeless. Montei a agulha com uma espécie de barbante que usamos para tapar os buracos nestes casos. Na hora de espetar, não saia mais ar nenhum dali. Guardei tudo, enchi o pneu de novo e notei que a lateral estava um pouco dilacerada, gasta pelo uso ou por eu ter rodado com o pneu muito baixo. Mas eu senti tão claramente quando o pneu baixou, o que pensar desse estrago?
Antes de ir para o Bikingman, eu pensei muito em instalar pneus novinhos. Estava com 2 pares em casa, 1 par deles também WTB Venture e diferente do que eu estava apenas pela lateral, preta. A lateral preta é um pouco mais pesada e protegida. O que eu tinha era “tan”, meio creme, mais leve porém menos protegida.
Esses pneus tinham sido tão bons, e ainda tinham cravos, mesmo eles estando mais gastos. Cheguei a perguntar a opinião de amigos experientes com aqueles pneus, e eles achavam que dava para usar os que eu já tinha no Bikingman. Eles não podiam antever as condições da prova quando eu perguntei. Já eu tive até uma hora antes da largada para trocar. De fato, levei um pneu novo para Taubaté e deixei na mochila.
Montei na bike e em segundos notei que estava vazando de modo intermitente. Parei logo, girei o pneu, coloquei meu peso em cima dele e entendi que o ar estava escapando pela lateral, onde o pneu encontra a roda. Ele provavelmente teria destalonado, ou seja, desencaixado da roda. Esse encaixe é fundamental no sistema tubeless.
O jeito agora seria reverter para o sistema de câmara. Eu carregava duas comigo. O tempo tinha mudado e o Sol ia ganhando força. O lugar era pouco sombreado e não oferecia um bom ponto para apoiar a bicicleta. Virei-a de cabeça para baixo, tirei a roda traseira. Seria apenas a segunda vez que eu desencaixaria um pneu tubeless.
Já minimamente escolado, não tive dificuldade em puxar as bordas do pneu para o centro das rodas. Notei entretanto que as laterais dos pneus estavam colando umas nas outras. Esses pneus de performance são diferentes dos que conhecemos, são muito mais macios. Mas aquilo era estranho para mim. Precisei tentar muito e até enfiar uma espátula entre os lados do pneu para descolar, aquele líquido selante estava um Super Bonder, mas depois de vários minutos e muita grosseria, digamos que consegui. Tirei o pneu da roda e escoei o líquido selante.
Tirei uma câmara da caixa e me lembrei que seria a primeira câmara que eu instalaria para aquele diâmetro de roda. Bicicleta parece simples, mas é uma taxonomia darwiniana de tradições e improvisos perenizados. Para rodas, o tamanho mais comum em bicicletas de performance é o 700c, ou 29 polegadas. A minha bicicleta não dava conta de pneus mais largos com esse diâmetro de roda, portanto eu transicionei para as rodas 650b, ou 27,5 polegadas. São rodas muito menos comuns hoje em dia, e seus pneus bem mais difíceis de encontrar também. A consequência é que muitas vezes as câmaras de ar para rodas 650b são também difíceis de achar, mais ainda para determinadas larguras de pneu. As larguras podem ser expressas em milímetros (47 no meu caso) ou polegadas quando o pneu é mais largo ainda, caso das mountain bikes.
Olhei na caixa da câmara: 27,5 polegadas de roda e 1,9 polegadas de pneu. Fiz a conta toda errada mentalmente e me preocupei, achando que a câmara era muito larga para o pneu. Mas era a que tinha, então enchi ela um pouco, encaixei dentro do pneu e comecei a encaixar esse conjunto dentro da roda. Uma vez semi-encaixado, o procedimento é esvaziar a câmara, encaixar o pneu e apenas então encher a câmara totalmente. Essa parte de encaixar foi fácil. Na hora de encher, por mais que eu bombeasse, o pneu nunca ficava cheio o suficiente.
Eu estava nessa labuta já havia uns 20 minutos. Pensei que talvez tivesse furado a câmara na hora de encaixar o pneu, algo que já fiz antes em outras bicicletas. Tirei a câmara. Enchi a câmara fora do pneu. Não achei furo. Peguei a segunda câmara e na hora de encaixá-la dentro do pneu senti algo estranho no dedo. Caralho. Tinha um grampo no pneu. Os tubeless são tão bons que é comum achar diversos grampos e espinhos quando abrimos um pneu. E eu tinha esquecido totalmente de verificar por dentro o pneu antes de colocar a câmara. Bom, o jeito era fazer isso agora. Dedilhei o pneu inteiro e ainda achei um segundo arame. Encaixei a segunda câmara e enchi um pouco, mesmo processo da primeira.
Nessa hora chegou o carro dos “Race Angels” da corrida. Cátia, Renan e Kleber. Eles vão tirando fotos dos atletas e se certificam que nada muito ruim esteja acontecendo. Fora isso, a ideia era não interferir.
Nessa hora eu já estava com a cabeça meio ruim. Admitindo para mim mesmo a sequência de erros bobos, e ainda sem ver uma saída. O caminho era fechar aquele pneu, encher, e torcer para dar tudo certo. Já angustiado, tive uma dificuldade incrível em fechar o pneu. Nessa hora chegou o Bruno Cardoso. A coisa estava tão ruim na minha cabeça que eu mesmo preferi abstrair um pouco e dar umas risadas com a turma, contando o que tinha sido a minha noite. Eles riram. Eu tive que rir junto. Aquilo não era o fim do mundo.
Incrivelmente, tudo aconteceu igual com a segunda câmara. Não fazia sentido. Tudo bem a câmara não ser a mais adequada para aquele pneu, mas encher tão pouco? Meio distraído até, ou tentando não passar para o lado de lá das regras da prova, o Bruno falou de si pra si que uma vez algo parecido aconteceu com ele, e a causa era a bomba muito seca por dentro. Surgiram duas maneiras de testar se era isso: a primeira era encher o pneu o máximo possível, fechar rápido a válvula, e ver se a pressão se mantinha. Enquanto eu dava um tempo para esperar o resultado do primeiro teste, o segundo teste foi simplesmente bombear e puxar a bomba para trás com o dedo no bico, e sentir o fluxo de ar. Inacreditável, a bomba estava roubando ar nos movimentos contrários.
Abri a bomba, passei óleo por dentro e comecei a bombear. Todos partiram e fiquei sozinho. O pneu estava enchendo, mas ainda com bastante perda de ar. Passaram por mim alguns ciclistas. Vários pararam um pouquinho. Certa hora um deles perguntou o que estava tão difícil ali. Ao terminar de responder, vi uma bomba de ar no meu pé. Ele me olhou querendo dizer “olha aí, vê se é isso mesmo”. Era. O pneu ficou cheio bem fácil, minha bomba de ar tinha me deixado na mão.
Guardei tudo e saí dali um pouco desolado. A prova tinha regras que eu tinha acabado de descumprir. Não sou perfeito mas também não sou desonesto. Independente de qualquer coisa eu tinha que sair do Inferno de Vargem, mesmo se eu abandonasse ali por quebrar a regra. Eu era responsável pelo meu transporte, o Bikingman só resgata em caso de emergência.
Simplesmente segui o caminho e finalmente, com mais de uma hora e meia perdida, passei por Vargem Grande. Nas cidades e vilas o caminho não precisa seguir a rota exata da prova, então segui por fora da cidade. Estava sem apetite e querendo pensar no que fazer, e sabia que teria alguém da prova na única lanchonete local.
Passei por Vargem e comecei a subir. Percorri não mais que 1 quilômetro quando comecei a ouvir um ruído estranho e recorrente. Quando acontece isso, a gente para de pedalar. Se o som parar junto, o barulho tem a ver com pedais, pedivelas ou eixo central. Se o barulho continuar, provavelmente tem algum problema nas rodas, freios ou pneus. Parei de pedalar, o barulho continuou. Desci da bike, girei o pneu da frente. Nada. Girei o pneu de trás. Jesus. A roda sem um raio tinha empenado tanto que estava raspando forte no quadro da bike.
Não me lembro disso ter acontecido comigo antes. Menos ainda com um quadro de carbono, frágil a esse tipo de atrito e acima de tudo bem caro. Eu nunca tinha alinhado uma roda na vida. E na verdade sequer tinha trazido uma chave de raios, ferramenta para isso.
Pensei na lanchonete de Vargem. Ali tem internet. Eu podia ligar para alguém, ver tutoriais ensinando alguma solução. Voltei 1km e pouco bem devagar.
Ao chegar na lanchonete do Jonathan, me deparei com boa parte do Bikingman. Pelo menos 10 ciclistas mais a equipe que tinha me encontrado antes. Eles me dão as boas-vindas, comento sobre as novas agruras na minha bike. O pessoal sugere que eu coma qualquer coisa, já era hora do almoço. Pra ficar pensando melhor, porque eu estava muito triste.
A lanchonete tinha virado uma oficina de bicicletas. Alguns trocando pastilhas de freio, outros tentando alinhar rodas, quase todos fazendo isso pela primeira vez. Naquele momento ficou claro que a regra tinha se flexibilizado um pouco, porque todos trocavam informações, e até a equipe de Angels tentava dar uns toques. Não é que uns estivessem arrumando as bikes dos outros, mas uma ferramenta ou outra era passada, e principalmente informação. A prova vinha sendo tão difícil, tão mais difícil com o mau tempo do que seria em outras circunstâncias, que eu achei bastante razoável essa leniência. Depois vieram muitas histórias mais de pequenas ajudas, que foram oficialmente toleradas pela organização.
Pedi um PF de bife e sentei do lado da roda. O que fazer? O Renan me pergunta se eu trouxe chave de raio. Renan veio como mecânico da Drop, loja de bike de São Paulo parceira da prova. Magro, um pouco mais alto que eu, de olhos verdes e bondosos, o Renan exala calma. Respondo para ele que não, não trouxe chave de raio. Renan pede para eu mostrar minha multiferramenta. Mostro minha Crankbrothers com 17 funcionalidades, recomendada meses antes pelo Ernesto. Renan aponta uns buracos em algumas das chavinhas, e diz com paciência comigo: isso aqui são chaves de raio, deve ter a do seu tamanho aí. Renan segue me passando os princípios de como alinhar. É um jogo de empurra-e-puxa, de equalizar tensões. Parece difícil mas não impossível. Já estou me animando quando ele aponta para outro lugar da roda: você já viu isso aqui?
Não, eu não tinha visto. O pneu tinha rasgado, desfolhado. Imagine o pneu como um pano fino coberto de borracha dos dois lados, um sanduíche onde o pão é borracha e o queijo é um tecido. Um pão, quer dizer, um lado da borracha, soltou ao longo da roda por uns 10cm, com uns 4cm na transversal. Foi tão difícil olhar para aquilo quanto para o machucado de um filho.
O almoço chegou, consegui comer metade mais um refrigerante. A coisa estava tão enrolada na minha bike que eu até relaxei, meu humor melhorou. Eu não tinha ideia se era possível rodar com aquele pneu, qual o tamanho do risco. O caminho até Ubatuba e uma boa loja de bike incluía a descida da serra, 8km muito inclinados, escorregadios e coalhados de carros.
Eu tinha uns manchões comigo. Manchão é um talo feito geralmente de plástico, que podemos colocar por dentro de pneus cortados e rodar. O que eu tinha, no entanto, não era um corte, e a parte exposta era a de fora. Eu nunca tinha passado por mais esse problema e não tinha base para avaliar.
Com o Jonathan da lanchonete comecei a telefonar para um mecânico de motos da vila e em paralelo para alguém com carro que estivesse disposto a me levar dali. Passam uns 10 minutos sem retorno de ninguém e chega um carro. Um carro com um ciclista dentro. Era o Joab. Joab tinha tido problemas sérios com a bike no Inferno de Vargem na noite anterior. Ele levou umas 14 horas parado na prova, tinha ido a Ubatuba buscar ajuda. Agora ele estava ali, sorridente, animado, e preparando suas coisas rodeado das sacolas de supermercado que usa para agrupar os itens que leva. Joab estava mais uma vez honrando o seu apelido: Zé Sacolinha.
Cumprimentei o motorista do Joab e perguntei: André, quer emendar mais uma aventura dessa? Sem hesitar, André estava dentro.
Oficina do Sapão
Antes mesmo de sair eu mandei uma mensagem para o Vini. Agora não adiantava mais eu ir para Ubatuba. Eu até liguei para as lojas de Ubatuba, mas nenhuma tinha pneus para a minha roda. Previsível, eu precisei comprar pneus importados com a ajuda do próprio Vini, meses antes. Falei para o Vini que minha solução era buscar o pneu que eu havia deixado de reserva em Taubaté. Perguntei se teria alguém no hotel para me dar acesso à minha mochila, e se na regra isso seria permitido. Vini respondeu que teria jeito de pegar o pneu, eu poderia continuar e ser Finisher caso completasse o percurso no tempo, mas estaria fora da classificação da corrida.
As últimas 18 horas tinham sido muita coisa para mim. Eu tinha uma hora, talvez 90 minutos até Taubaté. Precisava fechar os olhos e meditar. Saber que estaria fora da corrida me desanimou. Passear a gente passeia sempre. Por mais que eu viesse a chegar em último, eu tinha entrado no espírito da corrida e queria continuar na corrida.
Tentei dormir mas não consegui. Perguntei para o André como ele tinha ido parar naquela confusão. André é de Ubatuba, pedala e tem um lindo trabalho de paisagismo e jardinagem. Ele adora acompanhar ciclismo de longa distância. André hospedara Léo Pedalando Pelo Mundo e Joab quando eles fizeram o reconhecimento da prova. Ao saber que Joab estava em apuros, lá foi André ajudar. Ele estava blogueirando a prova, e parecia estar curtindo muito.
Quase chegando em Taubaté, meu ânimo, e talvez loucura, voltaram. E daí se isso é corrida ou não? Esse trajeto é tão lindo, vai parar aqui? Decidi que se eu achasse uma oficina aberta e disposta a me atender naquelas quase 5 horas da tarde, eu iria voltar ao Inferno de Vargem.
Achei. Era a Oficina do Sapão, profissional conhecido e experiente da área. Ele me garantiu que tinha jeito. Como todo o mundo do ciclismo no Brasil, ele tinha ficado sabendo do Bikingman e não ia me deixar na mão. Corri para o hotel atrás do pneu que deveria ter estado comigo na bicicleta desde a largada. Deixei o pneu no Sapão. Voltei para um banho cortesia do Anderson, que tinha abandonado mais cedo. Bati a cabeça no box do banheiro. Eu estava zureta legal mesmo.
Voltando ao Sapão, testei a bike cuidada pelo Bruno, que deu um show de mecânica. A bike tinha ressuscitado. Antes de partir comprei alguns itens: uma bomba de ar evidentemente, e as luzes traseiras que a loja tinha disponíveis, porque eu vinha muito inseguro com uma das minhas luzes falhando. Elas eram bem fraquinhas, para a cidade e olhe lá, mas eram as únicas disponíveis.
Compramos comida numa padaria e me vi anoitecendo na rodovia Oswaldo Cruz. Eu ia sim para os últimos 13km do Inferno de Vargem.
O tempo foi piorando. A Serra do Mar é uma parede para o vento e um ímã de chuva e nuvens. André dirigindo a mil, na prova comigo. Meu lado do vidro um pouco sujo, André comendo acostamento. Sou muitíssimo grato ao André e ele foi um verdadeiro anjo para mim. Ao mesmo tempo confesso que carreguei comigo esta experiência na neblina e chuva para o que estava por vir.
De Volta ao Inferno de Vargem
Finalmente de volta a Vargem. Difícil de acreditar quantas vezes já cheguei nesse lugar meio remoto. Eram umas 8 e tanto da noite, fazia um pouco de frio. Com a ajuda do André peguei todos os meus pertences e montei tudo. O último item a encaixar era a luz traseira. Fui na minha luz boa. Apertei o botão. Nada. Mais uma vez. Nada. Não era possível.
Semanas antes, outra luz dessa queimou depois de um brevet de 300km misto. Ela é da Bontrager, modelo Flare RT. Funcionando ela é excepcional, você é visto a 2km de distância numa reta. Minhas luzes duraram uns 10, 11 meses. Usei muito. Mas agora era a segunda a me deixar na mão.
A única solução era usar as luzinhas que comprei em Taubaté. Fraquinhas mas funcionavam. Respirei fundo, agradeci e abracei o André, e fui.
Os 13km finais de terra são de muita subida. A chuva bem fina e a neblina persistiam, e eu perdia tempo nas poucas descidas. Levou bastante tempo mas nenhuma surpresa aconteceu. Fui avistando uma casinha aqui, outra ali, até que vi a luz mais forte do posto de gasolina da rodovia Oswaldo Cruz. Desci da bicicleta, celebrei o fato de ter conseguido sair de alguma forma do Inferno de Vargem.
Agora eu teria uns 30 ou 40km sempre muito exigentes na Oswaldo Cruz, mais a perigosa descida da serra. Eu teria até 8h da manhã pra chegar a Paraty no tempo de corte, e nem em Ubatuba eu estava. A neblina era densa e a chuva fina parecia mais forte quando eu pegava velocidade. Eu sabia que os carros não me veriam se eu ficasse na pista. À noite, com visibilidade, a gente pedala mais na pista do que no acostamento, porque consegue ver os faróis vindo por trás a uma distância grande. Essa noite seria diferente, eu teria que ficar no acostamento sujo e escorregadio de folhas, galhos e chuva. Meu rendimento era proporcional ao que eu enxergava ao meu redor.
Com a adrenalina mais diluída depois de Vargem, e ainda tendo que manter toda a atenção do mundo, meu nível de energia mental estava ficando baixo. Tentei ouvir um audiolivro, mas a atenção não se fixava e eu ouvia menos a estrada. O que eu fazia mais era pensar na minha família, e se aquele risco que eu estava correndo não ia ficar alto demais. Acho fundamental ter sempre uma margem de segurança na vida. Com o tempo, à custa de quedas da bike, vamos aprendendo que o corpo pode parecer pronto para seguir, mas se a mente está cansada o resto fica comprometido. Erros aparentemente bobos podem nos machucar. Vamos descobrindo sinais, instalando sensores no nosso corpo e comportamento, mecanismos de defesa.
Quase todos os acostamentos, pelo menos no Brasil, ficam em um nível abaixo da pista de rolagem dos carros. Não sou engenheiro civil, imagino só que seja para a água da chuva escoar. Na Oswaldo Cruz esse degrau existe também. Pedalando, passamos do acostamento para a pista com um leve salto, evitando que a bike patine no degrau e nos derrube. Me lembro que o próprio Axel, criador do Bikingman, caiu dessa forma no reconhecimento desta mesma prova. Um detentor de recordes mundiais de ultradistância, num acontecimento com causa simples de explicar mas consequências potencialmente desastrosas.
Notei que passei do acostamento para a pista sem me lembrar do degrau. Isso era novo para mim, não é normal. Respirei fundo e prometi para mim mesmo ficar mais atento. Poucas centenas de metros além, mais uma vez esqueço do degrau e a bike patina, um pouco só. Mas é o suficiente. Eu não tinha condições de atravessar de Ubatuba para Paraty naquela madrugada, não com a cabeça desgastada, na chuva, neblina e sem boas luzes traseiras.
Não se abandona um prova de ultra à noite. O Sol nasce e tudo melhora, nós melhoramos junto. Mas o ponto de controle de Paraty fechava às 8, e na melhor das situações eu precisaria de 4 horas para chegar. Isso saindo de Ubatuba. Ainda tinha a serra para chegar em Ubatuba e, cereja no bolo, eu sentia as pontadas de uma diarreia no horizonte. Eram 23:45h. Durante a madrugada, com chuva, neblina, luz muito fraca e a cabeça exausta, era muito perigoso.
Escolhi abandonar. Eu desceria a serra sem pressa alguma. Segurança máxima. E assim fiz. Naquele momento o emocional segurou, todos os desafios que passei ainda estavam ali ao meu redor para me lembrar os motivos da minha escolha.
Cheguei na base da serra, a 6 ou 7 quilômetros do centro de Ubatuba. Uma descida longa e suave vai se transformando em um trecho plano. Deixei a bicicleta ir sem a força dos pedais. Estava já bem lento quando ouço, e logo vejo, um cachorro disparando atrás de mim. Na prova eles tinham me deixado passar…logo agora? Seria um sinal de que eu precisava mesmo abandonar? Pela velocidade que eu ainda carregava, resolvi pedalar forte e me livrar dele. O bichinho estava resolvido, ele acelerou também. Desci marcha. Ele não desistia. Precisei dar um sprint bem mantido. Pedalei forte mesmo. Minha musculatura estava muito bem, articulações, joelhos, bunda, mãos. Tudo ótimo. Essa força de agora, seria um sinal que eu devia continuar? Com o cachorro desistido, mudei para um marcha mais leve. A corrente foi toda e prendeu entre o cassete e o quadro. Pedalar para frente ou para trás ia quebrar a bike. Seria um sinal confirmando que era hora de pensar em novas aventuras? Ficar pensando muito em sinais é que sinaliza que a gente está ruim da ideia. A decisão é nossa, às vezes fortuita e um pouco aleatória, mas sou eu no comando. E eu já tinha decidido. Pensava, como pensei muitas vezes este ano, no que ouvi do Fred e do Nuno no começo do meu primeiro treino: “não completa o treino. Se você completar o treino, na hora da prova vai ter menos força de vontade de concluir. Vai até Queluz e volta pra casa.” Isso conflitava com o meu caminho óbvio de ir lá e tentar logo. Eu dava razão a eles, mas precisei completar. Eles estavam certos sim, até porque se eu não tivesse completado o treino, provavelmente teria arriscado menos na corrida. Mas tudo bem, eu aceito a maneira que as coisas aconteceram. Parei num local com muita luz para ver a corrente, ainda longe do centro. Tirei com cuidado a corrente do lugar errado. Olhei ao redor. Aquele lugar iluminado era um camping e pousada. Logo vi alguém na recepção, peguei um quarto, avisei a organização que minha prova ficava por ali, tomei um banho, senti o intestino reclamar, e fui dormir.
Outras maneiras de continuar
Durante a madrugada acordei 2 ou 3 vezes para ir ao banheiro. Diarreias acontecem muito em esportes de resistência extrema. Na prova, pelo menos 10 ou 20 pessoas passaram pelo aperreio. Não era a minha primeira nem segunda vez. Descarto ter sido algum alimento estragado. Às vezes penso que a lama que suja muito as garrafas de água pode causar isso. Me lembro entretanto de uma viagem que fiz com mochila de hidratação e sem chuva, ou seja, sem sujar o lugar onde bebi líquidos, e mesmo assim terminei com diarreia. Dizem que mesmo comer a poeira tanto tempo pode ser o suficiente. Talvez. A literatura dá conta de que o mero esforço prolongado altera a circulação sanguínea, o intestino perde prioridade de fluxo e a comida passa sem ser tão bem absorvida. O fato é que não tive cólicas nem fraquezas, tive apenas a desmoralização de não confiar no meu esfíncter.
Acordei de manhã indo ao banheiro de novo. Mas não estava sem apetite. Tomei um bom café da manhã, e às 6 recebo mensagem do Vini. Fiquei confuso, porque ele aparentou não saber da minha desistência. Confirmei para ele. Ele respondeu que ainda “dava para seguir”. Na hora fiquei mais confuso ainda, como eu iria em menos de 2 horas até Paraty? Em seguida presumi que poderia haver algum tipo de leniência com o tempo. Se foi isso, até agora eu não soube, e também não quis me embrenhar nessa possibilidade. Eu queria mesmo era ter feito a prova nos tempos certos. Corri meus riscos consciente, desta vez não obtive o retorno que queria. Mas já tinha muitos novos aprendizados, além de uma lista de novas coisas em que vou me desenvolver. Mecânica da bike, gestão do sono, equipamentos, pedalar cada vez melhor, nutrição, situações específicas de provas de aventura. Esta foi apenas a minha primeira corrida maluca.
Voltando para o quarto da pousada, meu plano já era voltar para Taubaté. Eu tinha virado a chave, zero amargura e muita vontade de aproveitar aquele tempo e aquela atmosfera. Iria curtir a chegada dos amigos, buscar minhas coisas também, e voltar para casa apenas quando tudo tivesse terminado, com a galera do Cascalho Carioca.
O fato de meus problemas mecânicos terem terminado de modo algum significava que os problemas dos camaradas que seguiam em frente tinham terminado também. Não deu 5 minutos e chega uma mensagem do Diego: “meu freehub está travando às vezes, estou saindo de Cunha e estou preocupado”. Freehub é o rolamento e também o mecanismo de transferência de força na roda traseira. Sem ele, nada acontece. Essas peças são muito específicas para cada roda, difíceis de encontrar por aí.
Diego tem praticamente a minha altura. Na hora pensei em levar minha bicicleta para ele. Escrevi para o Vini perguntando se isso seria admissível. Sim. Ele perderia a classificação na corrida mas seria considerado Finisher. Camiseta, medalha, foto, palmas e festa. E, como disse o Vini, “vai ser uma puta aventura”.
Passei mensagem pro Diego. Nesse meio tempo ele falou que a coisa estava piorando. Ele ia tentar voltar de carona para Cunha e tentar a sorte lá. Em paralelo tentei me informar sobre oficinas em Cunha e liguei para a Trilha Norte em Ubatuba. Eles não tinham o freehub. Me passaram para o Landão, mecânico. Falei “oba Landão, aqui é o Gustavo do Bikingman, alguns meses atrás você deu uma salvada na minha bike enquanto eu puxei um ronco na sua oficina, lembra?” Ele: “oba, lembro!” Perguntei se ele não conheceria alguém disposto a colocar minha bicicleta e eu num carro e me levar até o Diego, e quem sabe depois me deixar em Taubaté.
Nem 3 minutos depois recebo mensagem do Doval. Ele estava dentro. Corri para arrumar minhas coisas e pagar minha estadia. Antes de acabar, lá estava ele.
Doval é fera da bike, adora MTB. Apesar dos seus 50 anos, aparenta 32. Ele disse que pensou em se inscrever no Bikingman mas, como a prova foi adiada, ele acabou deixando o assunto de lado. Bom meu querido Doval, bem-vindo ao Bikingman.
O caminho a se fazer não seria outro senão o caminho exato da prova. Rio-Santos até Paraty. Subida Paraty-Cunha. Ali comecei na encontrar a rarefeita caravana. Primeiro, ou último, o Gabo, que tinha chegado a Paraty em estilo épico, superando seu cansaço e problemas intestinais. Agora ele ia empurrando sua bicicleta. Ele disse que estava melhor. Seguimos. Cruzamos Nilton César, que tinha saído de Paraty de madrugada ainda, apenas para ver sua corrente quebrar no escuro. Voltou a Paraty, consertou, encarou de novo a subida tão vertical. Chegamos ao topo. Descendo, encontramos Bruno Cardoso, Jéssica e Adriano almoçando. Apesar das expressões cansadas e dos equipamentos castigados, tudo tranquilo com todos. Fomos em frente.
Acabei emprestando Garmin, power bank, óleo de corrente e alguma outra coisa para os amigos precisados. Até celular deixado para trás transportei para o dono. Passamos por Willians desmaiado em um boteco diante de meia garrafa de 2 litros de Coca-Cola. Entrei na bodega em silêncio para tentar um wi-fi, sem querer incomodá-lo. Olhando para o Willians, o velhinho no balcão me pergunta: o senhor é da equipe de resgate?
Demorou muito tempo até alcançarmos o Diego. Mesmo de carro, é muito chão. Em Silveiras emparelhamos com ele e Rodrigo Pretola. Diego estava sorridente, quase zen. Alguém em Cunha abriu o freehub e simplesmente tirou metade das engrenagens. Ele ia seguir com a bike dele, agora era torcer para ela segurar a subida de Itatiaia, a mais longa do Brasil. Rodrigo ia sem câmbio dianteiro. Para trocar de coroa, só descendo e mexendo na mão mesmo. Esse calvário, por 10km já seria difícil de aturar. Ele seguiu assim por centenas de quilômetros.
Ainda encontrei Fred em Queluz, descansando no fim de tarde para só no dia seguinte encarar Itatiaia e tentar fechar a história. Boa ideia, ele tinha tempo.
Cheguei no hotel em Taubaté no pôr-do-sol do quarto dia de prova. Apenas 5 ciclistas tinham chegado. Fernando Zogaib tinha dormido menos de duas horas e precisado de 66 horas para vencer. Juliano “Rider” Gerhke chegou 40 minutos depois. Léo Pedalando Pelo Mundo chegou em menos de 80 horas. Atuaçōes impressionantes.
Muito se falou das alucinações que o Zogaib teve durante a prova, enxergando castelos onde certamente não tinha, entre outras visões. A coisa é séria. Desta vez não tive alucinação, não deu tempo. No treino completo, na quarta noite uma espécie de losango de luz apareceu no pé do morro ao meu lado. O losango foi crescendo na minha direção, eu numa descida. Cresceu, cresceu. Era um gigantesco balão, e vinha cair em cima de mim. Desviei muito assustado. Mas não, era apenas o farol de um caminhão rebatido na encosta. A “alucinação” mais doida mesmo eu tive 3 dias depois de voltar da prova: estava deitado de férias numa cadeira de praia, anoitecendo. Minha esposa Stefania saiu dali para tomar banho. Dormi pesado. Acordei num breu total. Olhei para o lado e vi uma pessoa dormindo do meu lado. Achei que era o Diego e fui acordá-lo para a gente retomar a corrida. Sim, 3 dias depois de ter voltado de Taubaté. Custou eu entender que era a Stefania de volta do banho.
Voltando a Taubaté, o primeiro que vi chegar foi o Bruno Rosa, em sexto lugar. Segundos antes, de carro, chegou Angie “Panchita” Ramirez. Ela estava inconsolável e chorava bastante, sendo cumprimentada e abraçada por todos. Suas pernas raladas e roxas davam uma ideia do que ela deve ter passado. Ao lado, era difícil entender o que o Bruno sentia. Provavelmente alívio. E alegria.
Perdi a chegada da Vicky, sétimo lugar no geral e primeiro no feminino. Vicky e Bruno são casados e chegaram tão próximos. Emocionante pra caramba.
Enquanto alguns chegavam, outros subiam Itatiaia. Flavio atacou a montanha na quarta noite de prova. Deu tudo certo para ele, mesmo com tanto sono. Na volta de Itatiaia ele manda uma mensagem falando o que viu: cruzou com o Mexerica debruçado em cima da bicicleta de um jeito muito estranho, tronco por cima do guidão e rosto quase na roda da frente. Flavio pergunta para o Mixirica se está tudo bem. Mixirica diz que sim. Flavio continua a longa subida, estão na parte final dela, na terra. Mais de uma hora depois, descendo no caminho contrario ele alcança Mixirica, que havia descido quase nada desde o último encontro. Aí Flavio sente que é melhor ver se está tudo bem. Finalmente Flavio consegue ver que Mixirica está pressionando um pedaço de pneu de caminhão no seu pneu da frente. Ele está completamente sem freio nas pastilhas, e improvisou um sistema de alta periculosidade: ele não segurava o guidom na descida mais longa do Brasil. Se te trouxer alívio, adianto que Mixirica sobreviveu à aventura, perdendo muito tempo e depois ainda pegando o caminho errado para Taubaté.
Mixirica não foi o único que se confundiu no caminho. O próprio Fernando errou um trecho próximo e sua vitória ficou ameaçada. Ele andou vários quilômetros na Dutra até se dar conta do erro e fazer meia-volta. Quase todo mundo pega uma bifurcação errada nessas provas, a diferença vem de perceber rápido e acertar. O filósofo e graveleiro Magnus, o “Maquinus” César, se perdeu enormemente no primeiro dia e gigantescamente no quinto, nessa levando junto um francês. Ambos perderam o tempo da prova. Maquinus parecia não se importar muito, e sim ter curtido o passeio. Não sei se o francês encarou o desvio com semelhante estoicismo.
Acordo para o quinto dia e vejo no mapa que o Rogério Moda estava chegando. Só eu estava acordado e fui eu que fiz uma entrevista improvisada. Rogério passou por mim perto de Vargem quando eu estava já puto da vida lidando com o vazamento de selante. Ele estava empolgado com o desafio da estrada de Vargem, e naquele momento não pude corresponder à altura. Agora sim, celebrei com ele sua realização. Rogério contou que fez a prova com toda a calma, dividiu em blocos de 200km e cumpriu à risca até Paraty. Uma vez no ponto de controle 2, digamos que ele fez um ajuste tático. Rogério foi jantar em um restaurante local, tomou uma garrafa de vinho com a Pati Volpato, voltou para a pousada e não conseguia dormir. Entre rolar na cama e rodar na estrada, Rogério optou pela segunda. Ele partiu para Cunha no meio da madrugada e não dormiu mais até o fim.
Encontrei Luisinho que tinha chegado às 4 da manhã. No abraço ele cai em prantos. Luisinho enfileira provas de 1000km, até ele chorando aqui? Perguntei exatamente isso, ele agora meio rindo lembra do reencontro um dia antes com o Diego. Diego pedalando debruçado no guidom, Luisinho pergunta se Diego precisa de ajuda. Diego levanta o rosto chorando muito, uma foto 3×4 encaixada no seu ciclocomputador. Diego explica soluçando: “eu tô com saudade do meu filhooooo!”
Perto de meio-dia Flavio conclui a prova. Estávamos quase todos no restaurante a dois quarteirões e não vimos a chegada. Pena demais. O rastreador GPS às vezes fica atrasado, mesmo o Vini, que também estava conosco, foi ludibriado pelo sistema. Ainda assim, chegamos só 2 ou 3 minutos atrasados. O Flavio é a calma em pessoa, pelo menos externamente. Mesmo tão tranquilo, durante a próxima hora ou duas, lágrimas escorriam lentamente de seus olhos enquanto ele tomava uma cervejinha em pé ali mesmo na área de chegada.
No meio da tarde, o mundialmente conhecido “iiiiiirrrrrráááááá” de Duribbe, Diego Uribbe, Diegão ecoou pela esquina da Rua Doutor Emílio Winther, endereço do agora imortalizado hotel Gran Continental. Diego ainda teve a quenguice de terminar numa derrapada. Agora todo mundo tinha almoçado e já estava ali. A festa foi grande, numa montanha de abraços.
Aos poucos a festa da prova ia chegando ao fim com alegria de sobra. Não me lembro da ordem mas festejamos Fredão muito guerreiro, Joab, Rodrigo Pretola, a dupla Paulo e Tales (vencendo), Marco Teixeira, a dupla Liandro e Idan, o grande Junior “O Segredo É Girar” superando a dor e a febre, o milanês Massimo, grandes Pupo e Wisley chegando juntos, Holger Theisen, Mixirica surpreendentemente ainda vivo, Nilton Cesar, Wel, o monstro da tenacidade Willians Marcolongo.
Na noite e madrugada chegaram, pelo menos, Bruno Cardoso, Jéssica Röpcke e Gabo. O tempo de prova se torna irrelevante quando consideramos as circunstâncias de cada pessoa ao mergulhar numa travessia dessa magnitude. Perdas familiares recentes, mudanças profundas de vida, crises existenciais – nada como 1000km feitos com a propulsão do próprio corpo para processar os verdadeiros desafios da existência com cada célula que temos.
A prova foi épica, inesquecível, e mudou, expandiu a vida de todos que estavam ali. A organização foi impecável em todos os sentidos. Agradeço ao Vini, Axel, Pati, Cami, Renata, Renan, César, Cátia, Cléber, Cedric, Didier, a alguns nomes que estou esquecendo agora e a todos os atletas.
Estava feita a história de cada pessoa que acordou bem cedo no dia primeiro de novembro de 2021 e às 5 horas da manhã largou no primeiro Bikingman Brasil.
Epílogo
Voltamos para o Rio no mesmo bonde que viemos: Flavio, Diego e eu. Paramos em um posto para almoçar com o Gabo, que viveu muitas histórias e tem outras tantas de mil aventuras.
Cheguei em casa, abraços e beijos na família, um jantar, uma boa noite de sono.
Acordei pensando em uma prova, um evento que eu vinha namorando seriamente havia meses. Tinha visto que a data de largada e o percurso foram oficializados enquanto eu estive fora de casa. É o Italy Divide 2022.
Abri o site para ver a rota. Largada marcada em Pompeia. Uma porrada emocional me sobreveio. Visitar Pompeia em 2017 foi uma das experiências mais impactantes que já tive. A prova segue subindo nada menos que o Monte, o Vulcão Vesúvio. Meu sangue virou lava. Do Vesúvio a Napoli e Roma entrando pela via Appia, quase 3000 anos de História. Moramos eu, Stefania e Olivinha em Roma. Próxima parada: Siena. Basta dizer que quase, mas quase mesmo, demos o nome de Siena para a nossa filha Aurora. A paixão das pessoas de lá pelo Palio, corrida de cavalos muito louca. Os times dessa corrida, chamados contradi, cada um representado por um animal e apoiado com tanta paixão quanto um time de futebol ou escola de samba. Florença, tão linda e próxima de Lucca, terra bela e amada em que vivemos, e meu bisavô nasceu. Bolonha. Mantova. Verona, cidade tão bonita, cenário de Romeu e Julieta. Para acabar, Alpes italianos em frente ao Lago di Garda, onde nadamos numa tarde de verão. Era um sonho ali quase me puxando, pedindo para ser realizado.
Confiro a data de largada: 23 de abril de 2022. Aniversário do meu pai. Chorei uns 3 minutos, sequei os olhos e fiz minha inscrição no Italy Divide.
Dez dias depois do final do Bikingman 21, abriram as inscrições para o Bikingman 22. Fui o primeiro a me inscrever.
PS: E eu nem falei do caminhão que EXPLODIU na estrada de Itatiaia e ficou ardendo em chamas umas 3 horas. Isso vocês perguntem pra quem esteve lá.
Depois de não ter conseguido completar o primeiro treino no percurso do Bikingman Brasil, a vontade de fazer o reconhecimento completo só aumentou. Planejei uma nova tentativa para a primeira semana de abril, deixando pouco mais de um mês de recuperação até a prova, que estava marcada para maio.
A primeira providência foi comprar não uma, mas duas gancheiras reservas, já que a falta dessa peça diminuta e tão simples de instalar tinha acabado com a minha tentativa anterior. Troquei a bolsa de selim da Draisiana por uma Ortlieb e reinstalei o pneu WTB Riddler na roda traseira. Este pneu veio com a bicicleta de fábrica, e o Vittoria Terreno Dry do primeiro treino estava gasto.
Havia outra pessoa planejando pedalar no percurso naquele mesmo fim-de-semana: o Vini, Vinicius Martins, diretor do Bikingman Brasil. Ele havia me ajudado muito no primeiro treino e eu tinha gostado muito dele quando o conheci em um brevet que ele organizou em Mogi das Cruzes. O Vini pretendia fazer os dois primeiros dias do trajeto e sugeriu irmos juntos. Depois de um pouco de hesitação minha, sabendo que o Vini é bastante superior a mim no pedal, entendi que ele estava aberto a ir comigo e combinamos de ir juntos. Logo o Fred Kastrup, que também tinha sido muito bacana e atencioso comigo no primeiro treino, confirmou que iria também. A festa estava marcada.
Pré-largada
A ida a Taubaté foi bem parecida com a do primeiro treino: bike até a rodoviária do Rio, ônibus até Taubaté, e bike até o hotel. Desta vez ficamos no Gran Continental, o hotel oficial da prova. O hotel é ótimo, melhor ainda do que o Íbis do primeiro treino, e o café da manhã foi sensacional.
Largamos às 5:40h. O tempo e o astral estavam ótimos. Antes mesmo de passarmos por Tremembé o Luiz Pires, que também vai participar da prova, se juntou a nós. Fomos em ritmo de treino, não era devagar mas dava para bater papo e brincar.
Paramos sem pressa em Santo Antônio do Pinhal e São Bento do Sapucaí.
Antes de entrar na terra eu baixei a pressão dos pneus “no dedo”. Senti que tinha exagerado um pouco, mas fui em frente.
A prova começa com 3 subidas longas. A primeira é de asfalto e as duas seguintes são de terra. As duas descidas na terra permitem andar muito rápido, mas podem ser traiçoeiras em algumas curvas, ou caso algum carro venha no sentido contrário, ou finalmente por ter pedras pontiagudas.
Na terceira descida meu pneu WTB rasgou por dentro de um cravo grande, o primeiro do sidewall. Esse pneu que veio com as Topstone é notoriamente ruim. O rasgo foi de um tamanho tal que não deu para vedar totalmente com o “macarrão” de tubeless. Após mais de uma hora tentando rodar com a vedação e ainda sem câmara, o ar não parava de vazar. Maestro Fred Kastrup aplicou toda sua engenhosidade e experiência, colocamos câmara no pneu e seguimos. O Vini, que já estava à nossa frente e não viu nada disso, seguiu para Joanópolis e cansou de dormir na calçada de uma padaria nos esperando.
Nos encontramos quase no final da tarde. Seguimos juntos e chegamos na “Grande Pirâmide de Bragança Paulista” (uma subida e descida não tão longas mas duríssimas) já à noite. Desta vez consegui fazer essa subida sem empurrar, mesmo com o cassete 11-34 que depois desse treino eu viria a trocar por um 11-42.
Andar com o Vini e o Fred foi uma aula constante: descer atrás deles me fez soltar muito mais o freio, mas nunca tanto quanto o Fred que é um downhilleiro muito craque. A tocada deles à noite é tão forte quanto de dia, ajudada por faróis de mais de 1000 lúmens que depois também adquiri. Toda a atitude deles é um ensinamento: eles têm automatizado até como subir na bike depois de uma parada, já tendo deixado a bike com marcha e pedivela do jeito ideal para recomeçar. Equipamentos, regulagens, psicologia…acho que absorvi uns 5% do que foi mostrado e dito por eles, mas melhorei uns 500% como ciclista de longa distância.
Quando chegamos perto de Bragança, o Vini recebeu mensagem do Fred dizendo que a braçadeira de canote dele tinha cedido, e ele teria que ficar por ali. Uma pena, e demonstração de que o percurso é tão duro para as bicicletas quanto é para os ciclistas.
Seguimos, Vini e eu, até Piracaia. Mais uma vez eu dormiria ali depois do primeiro dia do percurso.
Saímos de Piracaia às 6:30h da manhã. Não sacrificamos muito o sono – o Vini normalmente pedala mais acelerado em provas longas, e se permite dormir um pouco mais.
Em Igaratá tomamos um belíssimo café da manhã sentados na calçada. Era aniversário de 30 anos do Léo PedalandoPeloMundo, e mandamos um video de aniversário para ele daquela calçada mesmo.
O dia estava novamente muito bonito, e fomos curtindo em um ritmo um pouco mais acelerado do que no dia anterior. Paramos mais do que eu havia parado no primeiro treino, mas pedalamos mais rápido. Sabe Deus quão mais rápido o Vini teria ido se fosse no verdadeiro ritmo dele.
Chegamos no PC1 da prova, o Hotel Íbis de Mogi das Cruzes, no meio da tarde. O Vini ficaria por ali. Por precaução peguei mais 2 câmaras emprestadas com ele. Na regra da prova eu já teria sido desclassificado ao receber ajuda do Fred no primeiro dia, mas treino é treino.
Nos despedimos e segui para a nascente do rio Tietê. Mais uma vez emocionante o visual do km 355 da prova, especialmente com o sol começando a se pôr.
Tendo largado tarde e parado bastante, cheguei na estrada de terra que leva a Salesópolis praticamente à noite. Estava inseguro com aquele pneu WTB e fui “na manha”. Mesmo assim, logo notei que o pneu estava ficando baixo. Era sutil, então enchi um pouco e segui sem trocar câmara para sentir o que aconteceria. De fato foi um microfuro. Acabei seguindo assim: parando algumas vezes apenas para recalibrar.
Esse trecho de terra, beirando a represa, é muito bonito, um entre tantos trechos lindos da prova.
Cheguei em Salesópolis depois das 9 da noite. Todos os hotéis fechados por conta da Covid. Uma das poucas pessoas na rua era um vendedor de churros. Ele me deu um churros de presente. Apenas uma pousada me salvou: a São José. Fiquei sozinho na casa, troquei a câmara, derrubei o disjuntor num banho de chuveiro elétrico e dormi.
Saí de Salesópolis às 6 da manhã. Bastante frio mais uma vez, mas céu claro. Este dia me deixava um pouco apreensivo, porque eu pegaria o trecho que encerrou meu treino anterior.
Entre Salesópolis e a saída da Tamoios para a estrada de terra, estamos no primeiro trecho longo de relativo descanso de toda a prova. São 60km em bom asfalto, sem nenhuma subida agressiva, e com uma ótima descida de 4km.
A estrada de terra que sai da Tamoios faz um paralelo entre Caraguatatuba e Ubatuba, por cima da Serra do Mar. Ela começa bem tranquila, plana, sombreada e relativamente lisa. Segue assim por uns 20km, passando por uma ou duas vilas com padaria e lanchonete. Depois vai ficando mais acidentada, com subidas curtas e bem duras, muito menos carros e motos. Talvez seja a parte mais “erma” de toda a prova. Nada demais: não tem mais de 15km sem ao menos uma vila, e durante o dia você vai encontrar pessoas ocasionalmente. Vale a pena ir com bastante água e comida caso queira atravessar direto este trecho, em especial à noite.
Desta vez a estrada estava seca. Zero lama, zero queda. Passei preocupado mas ileso pelos trechos mais difíceis. Uma vez no asfalto, mais subidas até chegar na descida da serra de Ubatuba. Desta vez com bom tempo e asfalto seco, desci muito tranquilo a serra de 8km.
Cheguei em Ubatuba a tempo de pegar a Trilha Norte, ótima loja de bike, aberta. Fui muito bem atendido lá. Deram uma geral na bike: uma olhada no pneu (que furou de novo ao abrir), uma fita anti-furo, uma regulada nas marchas. Dormi profundamente na oficina enquanto isso.
Já à noite, toquei rumo a Paraty. O pessoal tinha falado de uma grande tempestade que viria, mas sabendo que existem várias praias com pousadas ao longo de Ubatuba, segui assim mesmo. Peguei apenas uma chuva bem leve. A estrada estava muito calma, como aliás esteve durante todo esse treino no auge da pandemia.
Em Paraty comi um pastel gigantesco, dormi em uma pousada belíssima, numa cama gloriosa.
Hoje seria dia de Serra de Cunha, 1500m de ganho de altitude em 15km. É a etapa rainha do Bikingman Brasil 2021, e nem tanto por essa primeira subida quanto pelo que vem depois: a travessia da Serra da Bocaina.
Parti às 6:55h e, antes de sair de Paraty, tomei um café caprichado para ter energia para chegar a Cunha. Em poucos quilômetros atravessamos a Rio–Santos e começa uma estrada muito linda e cercada de verde.
O que falar desta subida para Cunha? E mais ainda depois de 600 e poucos quilômetros pedalando? É dureza. Fui como pude: empurrando às vezes, descansando quando precisava. Para essa prova, uma relação muito leve sem dúvida faz diferença. Fui administrando com meu 30-34, já convencido havia uns 400km de trocar de cassete assim que pudesse.
Transposta a muralha, uma (no mais das vezes) descida muito linda e rural até Cunha. Bom asfalto e bom rendimento. Duas paradas para café e lanche, uma antes e outra dentro de Cunha, e vamos que vamos.
O Vini já tinha comentado sucintamente que o trecho depois de Cunha “é duro”. Era verdade. Estamos atravessando a Bocaina, afinal. A saída de Campos de Cunha foi onde, pela primeira vez na vida, empurrei a bike em zig-zag. A região transmite muita calma e paz, foi um prazer ter sofrido tanto por ali.
Sabendo que vamos terminar na mesma altitude que largamos, resta sempre o consolo de que uma hora vamos descer. E tendo subido tanto, cheguei à descida que lembro hoje como a mais bacana que já fiz: a descida que leva ao bairro dos Macacos, antes de Silveiras. É uma longa descida, não muito íngreme, de onde se vê toda a serra até onde a vista alcança. É possível ver também a estrada por alguns quilômetros, e como não havia carro nenhum, pude aproveitar as duas faixas de bom asfalto nas tomadas de curva. Delícia total.
Silveiras é uma cidade bem simpática onde parei já ao anoitecer. Um lanche caprichado e mais uns 40 ou 50km até Queluz. Esse trecho é mais plano, com asfalto perfeito e ótimo acostamento. Uma regeneração, se é que é possível, antes do último dia.
O Fred havia me dado uma dica que se mostrou excelente: dormir no Hotel Graal, do lado do posto Graal de Queluz. Fica bem no caminho, preço bom, quarto limpo e serviço ágil. Foi ali que dormi antes do último dia de treino.
Acordei ainda de noite desta vez, mas não saí direto para pedalar. Estava em um Graal, onde gastei uma fortuna comendo frutas, bolos e estocando energia para subir até o Parque de Itatiaia. Seria um ganho de 2000 metros de altitude em 40km, 13 deles na terra.
Um rápido trecho na Dutra, saída em Engenheiro Passos, e a subida começa timidamente. Não dura muito essa timidez. Logo estamos em uma subida de verdade, nunca tão agressiva quanto Cunha, mas muito, muito mais longa. A mais longa da minha vida até hoje. Ali liguei uma música pela primeira vez no percurso. Ali chorei pela primeira vez também. Aquele choro tão conhecido da longa distância, uma purificação e uma catarse silenciosa. Pessoal diz que faz bem.
Ao fim de 26km estamos na Garganta do Registro, a passagem para Minas Gerais e também o início do trecho de terra para o Parque. Ali tem algumas lanchonetes e lojas de roupas de frio, ótimo momento para uma parada.
A subida na terra é desafiadora. Asfalto antigo intercalado com terra requerem atenção e cuidado mesmo na subida. A temperatura cai muito também. Inúmeros gaviões são os donos do pedaço. Não vi água potável de fácil acesso. A chegada ao parque é muito bonita e ali sim há uma bica de água cristalina.
Após apreciar um pouco o lugar, meia-volta e descida. Com aquele pneu, fui de modo extremamente cauteloso. É uma descida de certo modo técnica, com muitos bicos de asfalto e pedras matreiras.
Felizmente, cheguei de volta à Garganta do Registro sem problemas. Almoço com o único doping permitido na prova: o guaraná caçula Mantiqueira. E então descer quase todos aqueles 26km que no sentido contrário tinham extraído lágrimas de meus olhos. Segunda pele, corta-vento e delírio na descida.
Alguns quilômetros antes de chegar novamente em Engenheiro Passos, a prova pega uma direita que vai até a Dutra por uma longa descida, quase plana, de cascalho. É o gravel. Rende muito e faz fluir todas as dopaminas e serotoninas da alegria.
A verdade é que, ao chegar no parque de Itatiaia, o resto da prova é um sprint de 150km. Cuidado nas descidas e sebo nas canelas porque o desenho da prova é feito para você terminar muito feliz.
Chegamos mais uma vez na Dutra porém mal a vemos desta vez: logo pegamos uma estrada antiga à direita, puro cascalho e plana. É o sprint já acontecendo. Nessa altura já era final da tarde, bastante sol e calor, e começando a vontade de chegar.
O longo trecho final é essencialmente asfalto, bem rolado, em boa parte iluminado mesmo à noite, e passando por várias cidades de médio porte do vale do Paraíba, de Cruzeiro até Taubaté. Para quem ainda tem perna é hora de pedalar a 30, 35km/h de média sem grandes problemas. Em outras palavras: se estiver acima do tempo com 850km de prova, tem jeito de se salvar.
Chegando na cidade de Taubaté, um tour da vitória pela cidade, uma última ponte-pirambeira, e finalmente a chegada da prova.
Conclusão
Achei o percurso do Bikingman Brasil 2021 muito bonito, desafiador e divertido. A pessoa precisa estar treinando, ou ter muita quilometragem nas pernas, para concluir bem. Ao mesmo tempo, mesmo os 100 primeiros quilômetros da prova já fazem tudo valer a pena.
Concluí em 114 horas. O tempo máximo previsto é 120 horas. Se tudo der certo, posso ser “finisher” da prova este ano.
Desde esse treino de abril, tenho certeza que evoluí: estou mais forte senão mais magro, fiz brevets em que virei a madrugada pedalando, melhorei minha bike e vou com menos peso na bagagem. Sorte é sempre necessária: não passar por aquela pedra, não entrar aquele galho nos seus raios. Estou muito curioso também de ver o que os atletas verdadeiramente bons vão fazer dessa prova.
Na preparação, fiz vários amigos. Passei a fazer parte do Cascalho Carioca, grupo de ciclistas de gravel aqui do Rio. Fizemos uma viagem juntos, no trajeto que vai ser o Rio Divide. Fizemos diversos pedais juntos. Conheci e entrei em contato com ciclistas de vários estados do Brasil e outros países. Li relatos de outras pessoas com quem ainda não conversei porém aprendi muito. Mais que tudo, me diverti.
Esse evento tem muito valor. Que venha esta edição e muitas outras. Obrigado ao Vini, Fred, Luiz, Axel, a todos os amigos da Cascalho Carioca — CXC e a todos os ciclistas que vão fazer parte dessa aventura.
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